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BINÓCULO
Franzen leva nove anos para escrever um romance. Seu hobby é observar aves

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É possível um escritor americano agradar a um só tempo o presidente Barack Obama, a apresentadora Oprah Winfrey, a maioria da crítica de seu país e ainda se tornar um best seller? Sim, se ele se chamar Jonathan Franzen, autor de linha liberal que aos 51 anos só escreveu quatro romances. O mais recente, “Liberdade” (Companhia das Letras), foi o acontecimento literário dos EUA em 2010, liderou a lista dos melhores do ano e chegou a ganhar o título de “romance do século”. Como não fazia há uma década, a revista “Time” estampou o rosto sisudo de Franzen na capa, com sua marca pessoal: barba por fazer e óculos de nerd. A honraria só havia sido endereçada a cinco escritores vivos em toda a história da revista: James Joyce, Vladimir Nabokov, J.D. Salinger, John Upidke e Toni Morrison.

Tanta unanimidade levanta suspeita, mas no caso de Franzen é legítima. Na contramão da literatura contemporânea, que vive de citações e procedimentos paródicos, o escritor ambiciona um formato do passado, o romance realista do século XIX em que o olhar microscópico sobre um grupo de personagens termina por compor um autêntico painel de uma época. Tal ambição é alimentada por uma rotina espartana. Franzen leva em média nove anos para criar suas histórias sobre famílias americanas de classe média e trabalha os sete dias da semana, a partir das sete da manhã. Ao visual carrancudo, é bom acrescentar a rouquidão: ela é causada por sua mania de testar os diálogos repetindo-os em voz alta, em seu escritório alugado.

E segue esse método absolutamente desconectado. Seu laptop ultrapassado não tem, por decisão própria, conexão com a internet. “Duvido que alguém conectado à web possa escrever boa ficção”, afirmou.

Quando lhe sobra tempo, Franzen (que sempre fala de pais e filhos, mas não tem crianças) dedica-se à sua outra paixão: a observação de pássaros raros. E é com a mesma obstinação que ele contempla os movimentos da alma de seus personagens. Em “Liberdade”, o alvo maior fica em Patty Berglung, a empenhada e esquerdista mãe de dois filhos, dona de uma situação confortável, mas ainda assim mergulhada em álcool e antidepressivos. Seu marido, um advogado ligado a causas ambientais e preocupado com o futuro de uma ave em extinção, termina por trabalhar para a usina de carvão responsável pelo desastre ecológico. O filho preferido volta-se contra ela, sai de casa e passa a colaborar em um negócio escuso com militares no Iraque. Sobra então o romance com um amigo do colégio, ex-roqueiro que Patty trocou pelo marido careta.

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Poderia ser um “dramazinho” à Hollywood, mas pela linguagem satírica e robusta de Franzen ganha dimensões de um épico contemporâneo. Nascido em Chicago, de pai sueco e mãe americana, Franzen é formado em alemão e ganhou a fama de arrogante por ter criticado os critérios do clube do livro de Oprah. Temia que se seu livro fosse indicado no programa, os homens não o lessem.
Não entende nada de marketing. 

 

Leia um trecho do primeiro capítulo do livro "Liberdade":

A notícia sobre Walter Berglund não circulou localmente—ele e Patty tinham se mudado para Washington dois anos antes e já não significavam mais nada para St. Paul—, mas o povo de Ramsey Hill não era leal à sua cidade a ponto de deixar de ler o New York Times. De acordo com uma longa e nada lisonjeira matéria do Times, Walter tinha deixado sua vida profissional em péssima situação na capital federal. Seus ex-vizinhos tiveram alguma dificuldade em conciliar os adjetivos com que o Times o qualificava (“arrogante”, “presunçoso”, “eticamente comprometido”) com o vizinho generoso, sorridente e corado que trabalhava na 3M e viam pedalando até a condução para o
trabalho todo dia, subindo a ladeira da Summit Avenue, em plena neve de fevereiro; parecia estranho que Walter, mais verde que o Greenpeace e cujas raízes eram sabidamente rurais, estivesse agora com problemas devidos a tramoias com a indústria do carvão e maus-tratos aos moradores do campo. Se bem que sempre tinha havido algo de estranho na família Berglund.

Walter e Patty foram os jovens pioneiros de Ramsey Hill—o primeiro casal de formação universitária a comprar uma casa na Barrier Street desde que o antigo coração de St. Paul sofrera um declínio considerável três décadas antes. Pagaram uma mixaria por sua casa vitoriana e depois se mataram por dez anos fazendo uma reforma completa. Nos primeiros tempos, alguém muito determinado incendiou a garagem e arrombou duas vezes o carro antes que a garagem fosse reconstruída. Motociclistas bronzeados acorriam para o terreno baldio do outro lado do acesso da casa para tomar Schlitz, grelhar salsichões e fazer roncar seus motores de madrugada, até que um dia Patty saiu de casa com roupas de exercício e disse, “Escutem aqui, sabem de uma coisa?”. Patty não metia medo em ninguém, mas tinha sido uma atleta de destaque na escola secundária e na faculdade, e era dotada do destemor dos esportistas. Desde o primeiro dia em que se instalara naquela área, não tinha como deixar de chamar atenção. Alta, de rabo de cavalo, absurdamente jovem, empurrando um carrinho de bebê pelas ruas tomadas de carros depenados, garrafas de cerveja quebradas e neve velha coberta de vômito, ela parecia carregar
todas as horas do dia nas bolsas de rede que pendiam do seu carrinho. Era possível imaginá-la, antes daquele momento, às voltas com os complexos preparativos relacionados ao bebê para uma complexa manhã de compras com o bebê; e, depois, podia-se vê-la à tarde, o rádio ligado na emissora pública, o Livro de cozinha do Silver Palate, fraldas de pano, o trabalho com divisórias e tinta à base de látex, em seguida o livro infantil Boa noite, lua, depois vinho Zinfandel. Ela já atingira o estágio pleno da coisa que apenas começava a acontecer no resto da rua.


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