Eles não falam, muitos não andam, outros não escutam, alguns não pensam, nenhum brinca, desafia, desobedece como nossos filhos. São bebês e crianças de três, quatro, cinco, seis anos que sofrem de doenças incuráveis, lesões cerebrais profundas, causadas muitas vezes pela mãe, através de tentativas de aborto com coquetéis de remédios de alta periculosidade, drogas, alcoolismo. Um ou outro foi vítima do desvario materno e/ou paterno – bebês recém-nascidos jogados no chão com a força de um adulto. Todos enfrentam a subnutrição. As mães aparecem só de vez em quando – quando aparecem; os pais sumiram. Os diagnósticos são escabrosos. Essas crianças sem nome, que receberam um nome simbólico – Milene, João, Jorge, Stefani, Michael… –, receberam também um lar simbólico no modesto Centro Organizado de Tratamento Intensivo à Criança, o Cotic, entidade privada sem fins lucrativos criada em 1999 para apoiar crianças com necessidades especiais.

São duas mulheres, Maria Margarida de Mello, a presidente, e Lúcia Helena Cardoso, que cuidam dessas crianças na casa onde moram, perto do Horto Florestal de São Paulo. Todos os cômodos da casa são usados pelas crianças. São carentes abandonadas, vítimas de maus-tratos, que foram retiradas dos familiares pelas Varas da Infância e da Juventude e pelos Conselhos Tutelares da Capital, uma vez que seus direitos foram violados. Na instituição recebem alimentação, vestuário, cuidados de higiene e saúde. “Encontram-se conosco crianças totalmente dependentes em suas atividades diárias, algumas com alto risco de morte, usuárias de medicamentos psicotrópicos e neuroléticos (medicamentos para acalmar distúrbios psiquiátricos e neurológicos) e que necessitam de assistência médica, odontológica, fisioterapêutica, fonoaudiológica e terapia ocupacional”, diz Margarida.

Ela e Lúcia fazem o que podem, com doações de contribuintes, voluntários e alguns grupos de pessoas que ajudam, doando roupas, alimentos, brinquedos, material de higiene e limpeza, etc. O que não dá para cumprir nem a metade das necessidades. Faltam fraldas descartáveis, remédios, apoio. Falta até oxigênio para as crianças que têm problemas graves de respiração.

Onze das 24 crianças que moram na rua do Horto sofrem de hidrocefalia, popularmente conhecida como cabeça d’água. O perímetro cefálico dessas crianças chega até 70 centímetros (o normal é em torno de 22), podendo se reduzir com a adoção de válvulas de drenagem. São crianças que necessitam de acompanhamento neurológico intenso – o que pode significar que deveriam estar num hospital ou numa clínica especializada, e não num abrigo. “Com tratamento adequado, a pessoa pode até ter uma vida normal”, diz Eduardo Mutarelli, um dos neurologistas mais respeitados do País, do Hospital Sírio Libanês. A Cotic faz o que pode para dar o tratamento possível, o que em alguns casos pode estar longe do adequado, apesar de a instituição dispor de uma equipe de enfermagem, fisioterapeuta, psicóloga e assistente social. O pequeno indígena Afonso, vindo do Alto Xingu, é o caso. Ele tem “ossos de vidro”, nome popular da doença osteogenese imperfeita, caracterizada pela extrema fragilidade óssea. Vive com as perninhas engessadas, preso numa cadeira tipo bebê-conforto para não correr riscos, o que dificulta até os procedimentos de higiene.

Cada criança que o visitante pega no colo – e do colo ela não
quer sair – carrega uma história de tragédia incompatível com sua
idade. Dez crianças deixaram a casa em regime de adoção. As que ficaram correm o risco de serem despejadas em 15 dias. O dono do
imóvel quer a casa de volta.