O dia 29 de outubro de 1998 tem seu lugar reservado na história. Exatamente às 2h19 da tarde, horário da costa leste americana, entrava em órbita o ônibus espacial Discovery. Seria mais um lançamento corriqueiro não estivesse a bordo o astronauta John Glenn, exibindo uma forma física impecável aos 77 anos. A aventura de Glenn, que completava 36 anos de seu primeiro vôo orbital e se tornava o homem mais idoso a ir ao espaço, inadvertidamente interrompeu um almoço de negócios que acontecia em Boca Ratón, na ensolarada Flórida, a apenas 30 quilômetros da base de lançamento de Cabo Canaveral.

O espetáculo proporcionado pela Discovery paralisou os comensais por alguns instantes, mas não impediu a continuidade do negócio, que buscava a obtenção de um empréstimo de exatos US$ 57.674.333,82 (mais de R$ 170 milhões em dinheiro de hoje) para financiar dois empreendimentos no Rio Grande do Sul – um shopping center em Santa Cruz do Sul, no interior, e um resort em Capão da Canoa, no litoral. As obras jamais saíram do papel. Já o destino do dinheiro é objeto de controvérsia até hoje e, mais importante, de investigações de lavagem de dinheiro e de evasão fiscal.

Quando Glenn e seus companheiros de jornada nas estrelas completavam a primeira órbita terrestre, 90 minutos depois de atingirem o estado de gravidade zero, ficava combinado que o advogado Michael Ortiz, o anfitrião do almoço em Boca Ratón, tomaria o papel de representante legal da operação, que começara dois anos antes. Mais precisamente em 12 de julho de 1997, quando o consultor de empresas Jorge Anibal Ferreyra (presente ao almoço), um argentino radicado há 30 anos no Brasil, foi contratado para elaborar os planos de negócio dos empreendimentos. A trabalhosa operação é considerada padrão para a obtenção de empréstimos no Exterior. Dois anos, várias viagens ao Exterior e sete tomos de documentos depois, o trabalho estava encerrado. Contratado pelas empresas Oyster Incorporadora (que faria o shopping) e Premar Empreendimentos Imobilários (construtora do resort e que tinha um representante, Henrique Zaffari, no almoço), Ferreyra entregou a documentação para o escritório suíço Von Sury Trust, nomeado para “vender” os projetos aos bancos internacionais.

Tudo correu conforme o planejado até que Ferreyra, segundo sua versão do caso, resolveu cobrar seu quinhão no negócio. Por contrato, a Conasint, sua empresa, teria direito a 6% do dinheiro que fosse obtido no contrato com a Premar, de US$ 23 milhões, e 3% do empréstimo que sairia para a Oyster, que almejava US$ 34 milhões. A comissão atingiria, dessa forma, cerca de US$ 2 milhões (ou R$ 6 milhões). O consultor alega ter recebido apenas o ressarcimento de despesas, inclusive dos gastos com as várias viagens internacionais realizadas a trabalho – quase todas acompanhadas de algum representante de uma das empresas. As empresas se defendem dizendo que jamais receberam o empréstimo, e portanto não devem um centavo a Ferreyra.

Em meados do ano 2000 o caso chegou à polícia, pelas mãos da Premar, que fez uma acusação formal de estelionato contra Ferreyra. “Vimos pela presente informar que até a presente data a firmatária não recebeu nenhum crédito, relativo a qualquer tipo de financiamento”, diz uma notificação extrajudicial de junho de 2000, encaminhada pela empresa ao consultor. “O dinheiro foi liberado em uma agência do Real ABN Amro Bank de Montevidéu, no Uruguai”, garante Ferreyra, com base na documentação que juntou ao longo do tempo e entregou à polícia.

Inquéritos – O caso originou dois inquéritos. No âmbito da Polícia
Federal, a denúncia foi arquivada por falta de provas em fevereiro
deste ano, depois de várias idas e vindas ao Ministério Público Federal.
O promotor que cuidou do caso, procurado por ISTOÉ, se recusou a dar entrevista, alegando estar trabalhando em outra cidade e, portanto,
sem condições de ter acesso ao processo. Já a investigação, iniciada
a partir da denúncia contra Ferreyra na 4ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre, continua, sob sigilo de Justiça. Convocado a se explicar da suposta tentativa de extorsão, o consultor contou sua história e se
disse vítima de uma trama que o levou a ser acusado de estelionato. Ferreyra assumiu, então, o papel de acusador. “O dinheiro saiu de Montevidéu e entrou no Brasil por vias escusas”, garante. Ele vai mais longe, dizendo que os milhões podem ter sido utilizados em operações
de lavagem de dinheiro ou mesmo em tráfico de armas – não há provas quanto a essas acusações.

O máximo que o delegado Rodrigo Zucco, da 4ª DP, pode informar é que o inquérito já foi encaminhado ao Judiciário e que ele permanece “no aguardo das informações solicitadas junto ao Banco Central e à Receita Federal”. O sigilo imposto ao inquérito impede Zucco de falar mais. A Receita Federal conduz sua própria investigação, também protegida por sigilo. A abertura das contas das empresas, garantida pela quebra dos sigilos fiscal e bancário, ordenada pela Justiça em 16 de junho, será determinante para o futuro do caso.

Ferreyra se apega a uma vasta documentação e a informações obtidas com o advogado Ortiz, o anfitrião do almoço na Flórida, e ao escritório suíço Von Sury, representado por U. Von Sury, para tentar provar que o dinheiro atracou no porto seguro de Montevidéu. Em 3 de junho de 1999, Ortiz informa a Ferreyra, via fax, “que o crédito da Premar foi confirmado, mas não tenho a data de quando será efetuado o primeiro desembolso” (o original está em espanhol). Duas semanas depois, em outro fax, Ortiz escreve ao “estimado Jorge” que “a última notícia que tenho é que a transferência se confirmou” e o dinheiro chegaria a Montevidéu ainda na tarde do dia 17 ou, no máximo, na manhã do dia 18.

A primeira hipótese vingou, a se crer em um fax enviado da Basiléia, Suíça, por U. Von Sury em 2 de dezembro de 2002. Ele declara, a
pedido de Ferreyra, que graças aos planos de negócio, o empréstimo
de US$ 57,6 milhões foi depositado em 17 de junho de 1999 na agência do Real ABN Amro de Montevidéu. Ferreyra reforça a importância
da informação prestada por Ortiz, já que ele teria sido apresentado
pelas empresas como representante legal do negócio tanto em um
fax datado de 20 de outubro, endereçado a Von Sury, quanto no histórico almoço de Boca Ratón. “Ou seja: o advogado deles está
dizendo que o dinheiro saiu”, acusa.

Golpe? – Procurado, Henrique Zaffari, o sócio da Oyster presente ao almoço, não foi encontrado por ISTOÉ. Antonio D’Amico, advogado e sócio do grupo Capão Novo (dono da Premar), diz que tudo não passa de um golpe armado pelo consultor e que o dinheiro jamais foi liberado. “Ele faz parte de uma gangue internacional que procura incautos para vender ilusões”, diz o empresário, entre ofensas pessoais a Ferreyra. D’Amico diz que a Justiça já encerrou o caso, no ato em que o Ministério Público Federal arquivou o inquérito. Ele confirma que passou quase dois anos mantendo contato profissional com Ferreyra, inclusive em viagens internacionais (todas com objetivos malogrados, segundo D’Amico). “Fui eu quem fiz uma queixa de extorsão contra ele. Toda a documentação, incluindo uma carta do Real ABN Amro afirmando que o crédito não existe, foi entregue à Justiça”, afirma. “É mentira”, rebate Ferreyra. “Um gerente do Real em Porto Alegre me confirmou o crédito”, diz.

Quanto à construção do resort, ele diz que só agora está sendo viabilizada, com 45% de recursos próprios. D’Amico confirma que chegou a mandar representantes para Montevidéu quando soube da liberação de US$ 4 milhões ou US$ 5 milhões de um empréstimo que ele passou a negociar por outras vias, após o rompimento com Ferreyra. Mas nem esse dinheiro, segundo ele, chegou aos cofres de sua empresa. A resolução do caso e a localização do dinheiro estão nas mãos da Justiça gaúcha. Certeza absoluta, até agora, só a de que John Glenn não levou os
US$ 57,6 milhões para o espaço.