Belo Horizonte, que nunca figurou entre as cidades mais violentas do País, vive uma onda de homicídios sem precedentes, provocada pelo aumento do tráfico de drogas e pela disputa de territórios por grupos criminosos. No ano passado, 825 pessoas foram assassinadas na cidade, contra 494 em 1998. Só nos últimos dois fins de semana ocorreram 51 assassinatos na Grande Belo Horizonte. Entre 1998 e 2002, foram mortas 3.256 pessoas, um crescimento de 67% em cinco anos, chegando a 80% nas favelas da capital. Em meio a essa guerra urbana, na segunda-feira 15 a Justiça de Minas Gerais mandou soltar Roni Peixoto de Souza, ninguém menos do que o braço direito do traficante Fernandinho Beira-Mar, no Estado. Ele foi recebido com foguetes na favela Pedreira Prado Lopes, uma das mais violentas, e com um churrasco para mil pessoas. Vai terminar de cumprir a pena em liberdade condicional. “É um exemplo emblemático de impunidade”, aponta Antônio David Souza Júnior, secretário Municipal dos Direitos da Cidadania. “A sensação é de que não adianta combater a criminalidade, que é melhor entregar os pontos”, indigna-se o coronel Genedempsey Bicalho, titular da recém-criada Secretaria Municipal Extraordinária para Segurança Urbana, que promete uma “ofensiva social” para dar um basta na escalada da criminalidade.

Segundo o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais, o “crescimento vertiginoso” dos homicídios na cidade tem alta concentração justamente em seis aglomerados pobres controlados por traficantes. Além de Pedreira Prado Lopes, as favelas de Cafezal, Morro das Pedras, Morro do Papagaio, Taquaril e Cabana do Pai Tomás contaram 665 mortes nos últimos cinco anos. Do total de homicídios ocorridos em Belo Horizonte entre janeiro e dezembro de 2002, 36% aconteceram nessas áreas que, somadas, totalizam 310 mil pessoas, 14% da população e apenas 4,3% da área da cidade. “Nunca estivemos sequer entre as 20 capitais mais violentas. Hoje estamos entre as líderes em homicídios”, constata Cláudio Beato, coordenador do Crisp.

Com o salto da criminalidade, Belo Horizonte já está entre as oito capitais com maior ocorrência de homicídios dolosos do País, segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça. Vitória (ES), com 55,5 homicídios por 100 mil habitantes, e Porto Velho (RO), com 52,3 por 100 mil, continuam no topo do ranking, mas Belo Horizonte já chega a 36,5 por 100 mil, perto de São Paulo (43,7) e Rio de Janeiro (41,1). Nesse ritmo, calculam os pesquisadores, em um ano a capital mineira vai alcançar o patamar de Rio de Janeiro e São Paulo.

Ex-chefe da Delegacia de Homicídios de Belo Horizonte e delegado da Superintendência Geral de Polícia Civil, Edson Moreira concluiu uma tese de pós-graduação intitulada “O crime de homicídio envolvendo o tráfico e uso de drogas”, no qual mostra que a explosão de homicídios é resultado direto da disputa entre quadrilhas por pontos de droga. A mais consumida é o crack, comercializado na forma de pequenas pedras vendidas a R$ 5. “Os pontos de droga em BH estão sendo consolidados”, explica Moreira. Ele criou a expressão “onda jovem” para descrever um fato terrível: são jovens da periferia, de 16 a 25 anos, as maiores vítimas e os principais autores dos crimes na cidade. Segundo o trabalho, a “epidemia de violência” rouba pelo menos dois anos e meio de vida na média dos moradores de Belo Horizonte. A expectativa de vida para homens é de 65 anos. Descontadas as mortes violentas, a média chegaria aos 68 anos.

Segundo a Divisão de Crimes Contra a Vida, há cinco anos o álcool era o principal motivador dos homicídios. Hoje pelo menos seis em cada dez assassinatos são derivados do uso e tráfico de drogas. Nada menos do que 85% desses crimes são cometidos com armas de fogo. “Não podemos esquecer que tráfico e consumo crescem juntos, um não sobrevive sem o outro”, lembra o pesquisador Robson Sávio Reis de Souza, do Crisp. Estima-se que 90% dos menores internados em centros de recuperação de infratores têm algum envolvimento com drogas. Outra pesquisa em 50 escolas estaduais, municipais e particulares de Belo Horizonte, realizada pelo Crisp, mostra que 51,9% dos alunos já viram ou ouviram falar de consumo de drogas dentro de suas escolas.

No Centro Mineiro de Toxicomania (CMT), referência há 20 anos no tratamento de jovens viciados, 33% dos 300 pacientes têm menos de 24 anos. A droga mais usada ainda é o álcool (48%), seguida por crack (22,5%) e maconha (14,53%). “Há uma relação clara entre droga e atos violentos”, diz a psicóloga Ana Regina Machado, diretora do CMT. O Centro Psico-Pedagógico (CPP) já atende crianças viciadas com até sete anos de idade. Para lutar contra a violência galopante, o Crisp, em parceria com as polícias Civil e Militar, Federal e Ministério Público, elaborou o projeto Fica Vivo. O programa colocou 24 policiais no Morro das Pedras, uma das favelas mais violentas. O número de mortes, que era de 17 por ano, caiu pela metade. Por outro lado, decisões inusitadas como a soltura de traficantes como Roni, o comparsa de Beira-Mar, só põem lenha na fogueira da violência na capital mineira.

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Rol de execuções vai parar na ONU

Assassinatos cometidos por policiais e por grupos de extermínio são uma prática disseminada no País. A constatação encontra-se no relatório Execuções Sumárias no Brasil, trabalho inédito, elaborado pelas ONGs Justiça Global e Núcleo de Estudos Negros. O documento descreve 349 execuções, ocorridas no período de 1997 a 2003, e aponta omissão, conivência e autoria de policiais e de outros agentes públicos em crimes de tortura e assassinato em 24 Estados brasileiros.

Do total de vítimas levantadas, 202 ainda não mereceram atenção do Ministério Público, ora pela péssima qualidade das investigações, ora pela falta de vontade de apurar os fatos. O trabalho será entregue à relatora da ONU, Asma Jahangir, que está em viagem pelo Brasil, justamente para apurar crimes dessa natureza. “Quando se trata de investigar crimes cometidos pela polícia, grande parte dos inquéritos é arquivada”, diz Sandra Carvalho, diretora da Justiça Global. Entre os casos estão o do comerciante chinês Chan Kin Chang e o do segurança Elias Isac dos Santos, morador de Guarulhos, que perdeu dois filhos em 2001. A emboscada montada pela polícia paulista, que matou 12 pessoas supostamente ligadas ao PCC, também está no relatório. “Esse é o caso mais emblemático de execução sumária ocorrida no Brasil”, diz o jurista e vice-prefeito de São Paulo, Hélio Bicudo. Ele é um dos responsáveis pela representação do caso à Justiça. “Há quase dois anos esse caso está enrustido no Tribunal de Justiça, ou seja, realmente engavetado.”

Madi Rodrigues


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