– Tu sabes que ele inventou a história, dirigiu e ainda fez as músicas?
– É?
Assim eu fui apresentada à comédia, assistindo aos filmes de Charles Chaplin, no Cine Art-UFF, pelas mãos de meu pai. Seu Manuel nasceu em 1919 em Vale Fuzeiros, pequena aldeia no Algarve, sul de Portugal.

Rapaz de belos olhos verde-musgo, sempre fez o que teve vontade. Em plena guerra mundial, juntou-se a outros jovens portugueses sem juízo e atravessou em uma pequena traineira o Estreito de Gibraltar, que liga o oceano Atlântico ao mar Mediterrâneo, em busca de um emprego em Casablanca. O risco valeria a pena para fugir da terrível ditadura de Salazar. Foram devidamente recebidos pela polícia marroquina e devolvidos para a polícia portuguesa. A aventura só serviu para poder se gabar de tamanha valentia.

Depois de se casar com a rapariga mais bonita da aldeia, quis vir para o Brasil. Veio. Com pouquíssimos tostões, mas com um emprego garantido no banco Ultramarino. Apesar do encanto da beleza carioca, instalou-se em Niterói, sabes como é, aluguel mais em conta.

Meu pai teve que morrer para eu perceber quanto o imito. Não só na teimosia, mas desde que me conheço por gente me dou com todo mundo. Branco, preto, pobre, rico, gay ou hétero. Sempre “dei confiança” para empregada doméstica, desrespeitando qualquer manual de patroa. Meu pai era assim, todo mundo farinha do mesmo saco. Lembro-me de uma vez, no meio de uma fofoca, ele dizer: “O que nos interessa se o rapaz tem namorado ou namorada?” Muito moderno seu Cabrita. Certa vez conheceu um sujeito, que muito simpático convidou-o para visitá-lo. Papai foi para casa, engraxou os sapatos e foi contente conhecer a família de seu novo amigo. Demorou um pouco para captar a mensagem. Depois de algumas taças de vinho, nada de esposa nem família. “Estás enganado, até logo.”

A única coisa que fez contrariado foi trabalhar no banco. Durante anos e anos trancou-se no ar-condicionado, que detestava, para dar a mim e a minha irmã os melhores colégios.

Nessa época, sentia-se mal com tonteiras e mal-estar. Decidiu que a alimentação natural poderia curá-lo melhor do que a medicina. Imagine! Na década de 70 ninguém falava nisso! Lá ia eu ao restaurante no subsolo da rua do Ouvidor tentar comer iguarias da macrobiótica. Eca.

Nunca vi ninguém depois da aposentaria ficar tão melhor. Não ficava doente, largou a gravata e passou a se dedicar à apicultura, às plantas, ao cinema e sempre metido numa obra. Resultado: eu sei tirar mel da colmeia, plantar tomates e, acreditem, sei fazer um muro, afinal eu era amiga dos pedreiros.

Meu pai morreu como todo mundo quer: de velhice, dormindo. Até nisso ele fez o que quis.

Em um mundo onde as pessoas se matam por heranças e seguros, só queria ainda registrar um diálogo entre mim e minha mãe:
– Mãe, a senhora sabe se tem direito de continuar recebendo a aposentadoria do papai?
– Ih… minha filha, não sei, nunca perguntei. Pergunta para sua irmã, ela deve saber.