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O Brasil sempre cuidou mal de seus enfermos mentais. A novidade, aterradora, é que agora consegue cuidar pior ainda – e a mais recente perda de qualidade se deu a partir do efeito colateral daquilo que um dia se imaginou ser o grande remédio: os movimentos antimanicomiais. Capitaneados por alguns médicos, poucos intelectuais e muitos políticos, que elegeram como ideólogo o cientista italiano Franco Basaglia, tais movimentos ganharam a queda de braço com a psiquiatria tradicional, exigiram o fechamento de uma infinidade de hospitais e promoveram a desinternação em massa de pacientes. A maioria desses hospitais e clínicas, operando como verdadeiras masmorras, tinha mesmo de ser implodida porque estava em questão a humanização dos tratamentos, ponto com o qual, naturalmente, todos concordavam e concordam. Ocorre, no entanto, que o Estado pouco fez para que em seu lugar surgissem unidades modernas e adequadas de atendimento. O resultado de tal negligência hoje é triste: os escassos leitos psiquiátricos, com mais de 70% deles ocupados por alcoolistas, não atendem à demanda e as instituições novamente se tornaram “depósitos de enfermos”, como diz a diretora do Conselho Federal de Serviço Social, Maria Bernadette de Moraes Medeiros. Mais triste ainda: estima-se que 60% dos pacientes não se adaptaram ao convívio com seus familiares (e vice-versa) e muitos deles tornaram-se paulatinamente os chamados moradores de rua, numa sucessão de gerações que vivem nessa penúria. “A esquizofrenia está presente em 10% dos sem-teto e 90% deles são alcoolistas”, diz Wagner Gattaz, professor titular e presidente do conselho diretor do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq). “Infelizmente, a política tem mais força que as evidências científicas e a saúde mental ou fica abandonada ou é equivocadamente enfocada pelos governantes.”

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“O doente mental só comete crime por
negligência do Estado que não o trata”

Antonio Serafim, psicólogo

Desembarcadas no Brasil há um quarto de século, as teses dos movimentos antimanicomiais até hoje orientam as políticas oficiais de saúde mental e delas nasceram, por exemplo, os Centros de Apoio Psicossocial (Caps), espécie de solução a conta-gotas num oceano de problemas: funcionam somente como ambulatórios, embora recebam 63,4% das verbas destinadas à saúde mental, e de suas 1,4 mil unidades apenas 50 internam pacientes. “No momento agudo de uma crise esquizofrênica em que o doente se sente perseguido, por exemplo, é preciso internação para protegê-lo de si mesmo e para proteger a sociedade”, diz Antonio Serafim, professor de psicologia e coordenador do Programa de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do IPq do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. “Quando um enfermo mental comete um crime, é por pura negligência do Estado.” Ele alerta para o fato de que atualmente já é possível, até mesmo numa criança, detectar se ela dá sinais de que poderá desenvolver alguma enfermidade mental. Para isso, no entanto, o Estado tem de estar presente nas escolas com psicólogos e educadores especializados. Serafim cita dois exemplos, o de Wellington de Oliveira (responsável pelo recente massacre numa escola no Rio de Janeiro) e o de Mateus Meira (que em 1999 metralhou pessoas num cinema em São Paulo). “Não é andando na rua que vamos dizer esse cidadão pode ser um Wellington e esse pode ser um Meira, não é olhando adultos. É acompanhando de forma especializada crianças nas escolas, e isso exige participação do Estado”, diz Serafim. Outro exemplo a reafirmar o seu raciocínio é a estatística sobre Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: a cada dez crianças com essa doença, seis correm alto risco de se envolverem em delinquência juvenil.

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DESCUIDO
Wellington, o atirador do Rio: se tratado quando criança, dificilmente mataria

Pode-se então, dessa forma, intervir preventivamente na saúde mental, em vez de apenas se pensar nela quando ocorrem atos de violência – seja do indivíduo contra a sociedade, seja contra si mesmo. Entra-se aqui, assim, num dos mais importantes campos relacionados a esse tipo de enfermidade – o do estigma. Muitas vezes a família guarda preconceito contra seu ente doente e não o leva a tratamento, muitas vezes a sociedade o isola. O Estado não age para derrubar esses tabus e quando acontecem atos de violência o estigma aumenta porque corre-se a vincular o doente e a sua doença ao crime. “Antes era o estigma de enfermo mental, depois vem o estigma de enfermo mental criminoso”, diz Serafim. “Hoje no Brasil o diagnóstico de doença mental não é diagnóstico, é condenação”, diz Jorge Alberto Costa e Silva, ex- diretor internacional da OMS e ex-presidente da Associação Mundial de Psiquiatria. “O doente mental é estigmatizado, ninguém quer ter um por perto. O País precisa mudar radicalmente essa maneira de pensar e de agir.”

O Brasil e outros países
Especialistas consultados por ISTOÉ são unânimes: Alemanha, Canadá e Inglaterra são modelos no campo da saúde mental por possuírem justamente o que falta ao Brasil: planejamento de assistência. Na Alemanha os hospitais têm como prolongamento comunidades terapêuticas e oficinas abrigadas.
No Canadá os cuidados são totalmente integrados em três níveis: primário (posto de saúde), secundário (hospital de médio porte) e terciário (hospital de referência). A Inglaterra desenvolveu um programa de internação máxima e desinternação gradual para o enfermo que tenha cometido um crime: ao sair do hospital, vai obrigatoriamente para as unidades comunitárias e seus familiares diretos têm de acompanhá-lo. No Brasil o doente mental criminoso, se for considerado irresponsável pelo seu ato, é encaminhado a manicômios. Em nenhum deles há tratamento adequado, quer psicológico ou medicamentoso, e os recursos recebidos do Estado são mínimos. “É mais fácil excluir da sociedade: tranca lá e pronto. Embora hospitalizados, os pacientes não recebem tratamento, a não ser a contenção”, diz Maria Bernadette de Moraes Medeiros, diretora do Conselho Federal de Serviço Social. Os manicômios são, em sua maioria, um local para esperar a morte
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“Infelizmente, a política é mais forte que a evidência científica”
Wagner Gattaz, psiquiatra