Crítica teatral mais importante e temida do País completa 80 anos, carregando a mesma certeza de não ser condescendente com peças ruins

Se fosse uma personagem, correria o risco de incorporar o arquétipo da velha senhora se equilibrando numa cadeira de balanço, óculos de grau na ponta do nariz, crochê nas mãos e novela na televisão. Mas, na vida real, a carioca Barbara Heliodora, 80 anos comemorados no dia 29 passado, é tudo, exceto um clichê. Em boa forma, a memória afiada desfiando o imenso conhecimento de sua maior paixão, o teatro – junto com o bisneto Pedro, de um ano e cinco meses –, Bárbara é como a obra de Shakespeare, da qual é a maior conhecedora no País. Ou seja, quanto mais o tempo passa, melhor fica. Arriscando-se na juventude em papéis como os de uma árvore numa montagem de Chapeuzinho Vermelho, para depois descobrir sua falta de vocação para o palco, passando pelos estudos de literatura inglesa na Universidade de Connecticut, Estados Unidos, e pela experiência de algumas direções, nos últimos 45 anos Barbara Heliodora desempenha o papel da crítica teatral mais respeitada e temida do País.

Seus textos, publicados nos principais jornais do Rio do Janeiro e nos últimos 11 anos em O Globo, atingem amigos, inimigos involuntários, mas nunca erra o alvo. Entre as cabeças coroadas que acertou com sua sinceridade pesada estão a da atriz Marília Pêra e dos diretores Ulysses Cruz e Gerald Thomas, de quem recebeu uma chuva de impropérios verbais e, logo depois, um pedido de perdão. Três vezes mãe, quatro netos, um bisneto e dezenas de vasos de rosas e margaridas espalhados pela varanda de seu casarão no magnífico Beco do Boticário, no bairro
do Cosme Velho, a Barbara de 80 diz que é “a mesma de 79”. Leia-se:
é capaz de elogiar Reynaldo Gianecchini em seu esforço para ser ator
e desconstruir montagens patrocinadas por queridinhos da mídia, como
Jô Soares e Eduardo Moscovis. Muito diferente de ler Barbara Heliodora – que em média assiste a três peças por semana – é ver Barbara Heliodora. É preciso muita atenção para se convencer de que aquela senhora
afável é a mesma que consagra e crucifica espetáculos, empala e entroniza artistas e gêneros teatrais. Na segunda-feira 1º, entre telefonemas de felicitações e carinhos em seu cachorro bassê Toco –
“a pessoa mais importante da casa” –, Barbara, a terrível, conversou
com ISTOÉ sobre a experiência fascinante, e angustiante, de
conhecer profundamente uma arte.

ISTOÉ – Como é fazer 80 anos?
Barbara Heliodora

É sobreviver. A coisa mais engraçada, principalmente para uma pessoa como eu, com muita memória, é lembrar o quanto as coisas eram diferentes, o que era o Rio de Janeiro quando eu era menina. A cidade ficou mais caótica do que eu. Perto da minha casa, na rua Clarice Índio do Brasil (Flamengo), havia um estábulo e vendiam leite tirado das vacas. Verdureiras e peixeiros vendiam seus produtos em casa e anotavam tudo em um caderno. Na praia de Botafogo, na esquina da rua Marquês de Abrantes, tinha um teatrinho de bonecos todo domingo de tarde. Uma pena essas coisas terem desaparecido. As crianças eram crianças por mais tempo. Não sou saudosista, mas qualquer um, de qualquer idade, sente que o mundo vive uma crise de passagem. É um pouco angustiante, fico preocupada com o mundo que meus netos e bisnetos herdarão. Minhas filhas dizem que sou uma lista telefônica ambulante, lembro de coisas que aconteceram há 50 anos,
em detalhes. Mas para o teatro desenvolvi memória seletiva. Hoje em
dia anulo automaticamente as coisas muito ruins que vejo.

ISTOÉ – Se sua vida fosse encenada, o que seria?
Barbara Heliodora

Uma comédia meio sem graça.

ISTOÉ – Dizem que a sra. escreve tudo o que pensa, sem freios. É assim mesmo?
Barbara Heliodora

É porque eles não sabem o que eu penso. Na maioria das vezes é exatamente o que eu penso, mas muitas coisas eu procuro dizer sem chegar ao delírio, porque a minha vontade era dizer assim: “Mas isso é uma estupidez, uma coisa horrorosa.” Algumas coisas me irritam, aí eu paro e só escrevo no dia seguinte. Não escrevo com raiva. Talvez eu faça um pouco menos de cerimônia. Se uma pessoa faz uma coisa que está toda errada e você, para ser bonzinho, diz que é ótimo, ela vai piorar cada vez mais. O ideal seria se todos tivessem um amigo que dissesse: “Isso está um horror, não está pronto, está uma porcaria.” Há muita auto-indulgência. É preciso que se diga a verdade, mas a minha verdade não é de papa. Há vários críticos, cada um tem a sua opinião.
 

ISTOÉ – Sobre Tartufo, com Eduardo Moscovis, a sra. diz que é um desmando geral. Frankensteins, dirigida por Jô Soares, chama de idiotice anódina. Água viva, com Suzana Vieira, relata que o primeiro engano, o de se tentar encenar, já é fatal. Por conhecer muito teatro e ter grau de exigência elevado, a sra. não acaba sendo mais rigorosa do que a média do público?
Barbara Heliodora

O fato de o público gostar não impede que eu diga o que penso. A coisa que mais me incomoda hoje em dia no teatro, que me
dá vergonha, é ver o público cair na gargalhada cada vez que uma atriz solta um palavrão. Me dá uma vergonha como brasileira ver as pessoas acharem aquilo uma maravilha. Não estou querendo censurar, nem quero um teatro moralista, mas não se pode deseducar a esse ponto. Tenho certeza que todas aquelas porcarias que levam para os teatros lá em Miami, como eu chamo a Barra da Tijuca, estão sempre cheias e com as pessoas às gargalhadas. É um prejuízo para o Brasil. Se fizerem bem-feita uma comédia de um ato de Molière, na periferia do Rio ou de São Paulo, o público vai adorar. É muito melhor dar a eles a chance de vivenciar novos mundos, de ampliar seus horizontes, em vez de limitar.
 

ISTOÉ – A sra. seria uma boa atriz? .
Barbara Heliodora

Seria péssima. O ator tem de ter um grande prazer de pisar no palco e eu não tenho. Nasci para crítica

ISTOÉ – Se Shakespeare desembarcasse hoje no Brasil e visse alguns espetáculos no Rio ou em São Paulo, o que acharia do teatro brasileiro?
Barbara Heliodora

Barbara – Ficaria meio chateado porque ele escrevia teatro popular. E teatro popular não precisa ser ruim. Ele atendia ao público, em geral, de todo o espectro social, o que hoje em dia é muito difícil. Meu Deus, as pessoas são capazes de pensar, de gostar de uma coisa boa! Pegar Tartufo, que é uma obra-prima extraordinária, e fazer uma chanchada é uma coisa lastimável. A direção levou a peça para um caminho catastrófico. E quando vai aparecer outro Tartufo? Quando aquele público vai acreditar que Molière é bom? É tão ruim que nem a gargalhada que eles querem aparece. Só aparece quando dizem coisas que não deviam dizer ou fazem gestos obscenos para conseguir gargalhada.
 

ISTOÉ – O que sobra de bom no teatro brasileiro?
Barbara Heliodora

O momento do teatro está ruim. Tem atores bons, atrizes boas, alguns diretores interessantes, de vez em quando é feita alguma coisa muito boa. Fiquei encantada em ver A ópera do malandro, Veneza, A prova e Novas diretrizes em tempos de paz. Horríveis são os desníveis de peças boas e coisas muito ruins.
 

ISTOÉ – Produtores reclamam que há uma grande dificuldade em captar recursos e acabam fazendo concessões, como colocar galãs globais e encenar peças mais comerciais. A sra. concorda?
Barbara Heliodora

“Ah, o público não gosta”, dizem. Mentira, não é oferecido. A Fernanda (Montenegro) fez Dias felizes, do Beckett, e foi um sucesso de bilheteria no Rio, em São Paulo e em todo lugar, e não tinha nada disso. O público pode ser chamado por outros motivos. Não é só palavrão,
não é só nudez, não é só trabalhar na televisão. Levam a Orquestra Sinfônica para a praia, para o Campo de Santana e fica apinhado de gente. Essa política do Theatro Municipal do Rio de fazer ópera a
preços populares é ótima, está sempre lotado. Não me diga que o
público não quer. Acho que essas pessoas julgam mal o povo. Quando oferecem coisa boa, o povo vai.
 

ISTOÉ – Há um jeito de financiar o teatro no Brasil?
Barbara Heliodora

Não temos pessoas que invistam no teatro como acontece
nos Estados Unidos ou na Inglaterra. Em Nova York, ao montar uma peça, vendem cotas. Já pensou a sorte de investir em My fair lady
ou em O fantasma da ópera? Agora, o que a mim ofende é dinheiro de patrocínio, que não tem de ser pago, para montar comédia apelativa de baixaria, isso é que me deixa indignada. Essas coisas fariam sucesso de qualquer maneira, iam ganhar dinheiro, mas ainda querem subvenção. É dinheiro caído do céu. Acho que também não há critério de quem dá.
Os nomes de teatro que eles conhecem é Bibi Ferreira, Fernanda Montenegro e possivelmente o (Antonio) Fagundes.
 

ISTOÉ – O preço do ingresso não é alto para o poder aquisitivo da população?
Barbara Heliodora

Tudo depende do que você oferece. Eu acho horrível cobrar isso e oferecer uma coisa ruim. Ninguém vive de Hamlet sete dias por semana, nem de musical. Precisa haver variedade. Agora, o texto comercial tem de ser ainda mais bem-feito do que o outro para se justificar. Aquele Com a pulga atrás da orelha, da Maitê Proença, nunca vi coisa mais catastrófica, um saco de gatos. Claro, não posso chegar na crítica e escrever: “Meu Deus, que saudade do espetáculo do Teatro dos Sete, com a Fernanda, o Ítalo (Rossi), o Sérgio (Britto), era uma coisa maravilhosa.” Não dá para ficar comparando, nem precisa. Era tão ruim, tão ruim, uma coisa horrível. É um vaudeville, e não custava nada fazer bem-feito. Não pode tudo ser chanchada, meu Deus! E o Gracindinho (Gracindo Jr.) disse que passou a vida sonhando em dirigir este espetáculo. Para no fim fazer aquilo?

ISTOÉ – A proliferação de atores-modelos, como Reynaldo Gianecchini, incomoda a sra.?
Barbara Heliodora

 O Gianecchini está fazendo um esforço extraordinário, está melhorando, estudando. Mas tem uns que acham que são maravilhosos
e pronto. Se as pessoas se dispusessem a estudar e a tentar, tudo
bem. Pior são os que pensam que sabem fazer. Eles não vão melhorar nunca porque já são maravilhosos. Nem o sucesso de uma peça garante que a outra vai ser boa. Bolinha de cristal é uma coisa que não
apareceu no teatro até hoje.
 

ISTOÉ – Recentemente, a sra. criticou Cacá Mourthé, herdeira do Tablado, por ter aberto o espaço para um espetáculo comercial, Confissões de mulheres de 40, do qual ela faz parte. Por quê?
Barbara Heliodora

O que ela está fazendo é revoltante. A Maria Clara (Machado) lutou a vida inteira para preservar o Tablado como amador. Ela acreditava nisso e fez muito bem. Deixou nas mãos da coisa, que diz que não está recebendo nada por isso. Entre outras coisas, ganhou um papel para ela. Acho isso revoltante. A verdade é que a Cacá não tem o talento da Maria Clara, então não vai ser a mesma coisa.
 

ISTOÉ – A sra. teve algum prazer ao ver Gerald Thomas depondo na polícia para explicar por que baixou as calças e mostrou o traseiro depois de ser vaiado ao fim da ópera Tristão e Isolda no Theatro Municipal?
Barbara Heliodora

Eu não vi, não tenho nada com isso. Depois que ele desejou minha morte por pneumonia e eu sobrevivi a várias, ele se ajoelhou e me pediu perdão, durante um espetáculo no Paraná. Mas isso é irrelevante, como é irrelevante falar do teatro dele.
 

ISTOÉ – Ter inimigos declarados, como Marília Pêra, Ulysses Cruz e Gerald Thomas, atrapalha de alguma forma?
Barbara Heliodora

 Eu não os considero inimigos. Tenho o maior respeito pela Marília Pêra, ela tem muito talento, fez um papel maravilhoso em Central do Brasil, mas aquele Madame Café (A saga da Senhora Café, dirigido por Marília) é uma coisa vergonhosa. A única coisa que eu disse é que acho que ela tem um nome a zelar, não devia fazer aquilo. O que eu escrevi não corresponde ao que disseram. A gente sabe que o emprego não é dos mais agradáveis, a gente se arrisca a desagradar a algumas pessoas. O que se vai fazer?
 

ISTOÉ – Quais os melhores atores que sra. viu atuar?
Barbara Heliodora

Já vi muitos atores bons no Brasil. Ítalo (Rossi), Walmor (Chagas), Paulo (Autran). Acho o (Marco) Nanini um ator extraordinário, como o Pepê Rangel (Pedro Paulo Rangel), o Selton Mello. O próprio (Miguel) Falabella é um ator talentoso. A Fernanda (Montenegro) é uma atriz extraordinária. Tem gente boa, não falta ator. Fico com pena que não haja mais flexibilidade para os cursos de teatro serem muito mais práticos do que são. E, principalmente, a exigência de titulação, que acabou com a possibilidade de um diretor ou um ator transmitir sua experiência. Quem dá aula é gente titulada que nunca pisou em um palco. Isso prejudica o ensino do teatro tremendamente.
 

ISTOÉ – Que conselhos daria a jovens que pensam em seguir a carreira?
Barbara Heliodora

Faça um curso, estude muito, tenha humildade e perseverança. Tem de estar em dia com o mundo para saber o que está falando, senão vai virar papagaio.
 

ISTOÉ – Pensa em pendurar as chuteiras?
Barbara Heliodora

Às vezes penso, fico com vontade de poder só ver o que é bom. Essa obrigação de ver tudo não é mole. O prazer que dá ver um bom espetáculo compete com o desprazer que dá ver as porcarias. Mas eu gosto muito de teatro, ainda estou muito engajada, ainda me divirto muito, de maneira que é fé em Deus e pé na tábua.