Quando os cientistas anunciam algum feito inovador, especialmente nas áreas de técnicas reprodutivas e genética, o telefone do professor Volnei Garrafa, na Universidade de Brasília, dispara. Ele é especialista em analisar aspectos morais e metodológicos relacionados à ética da vida humana (ou bioética) e se tornou uma referência para discutir as implicações de cada pesquisa ou descoberta. Garrafa é integrante da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), do Ministério da Saúde, organismo encarregado de analisar projetos de estudo com seres humanos. Quando deixar o cargo, neste mês, ele dedicará mais tempo à discussão dos rumos da bioética. Junto com outros cientistas e filósofos, trabalha na formulação de uma política nessa área para os países do Hemisfério Sul. Nesta entrevista a ISTOÉ, Garrafa falou de sua preocupação com os esforços internacionais para flexibilizar os critérios de pesquisa. Este será o tema mais polêmico da reunião anual da Assembléia Médica Mundial, que acontece nesta semana, na Finlândia. Diversos cientistas vão propor uma mudança nos cuidados com os participantes de estudos. Hoje, a Declaração de Helsinque – documento internacional sobre o controle ético de pesquisas com seres humanos – determina que esses indivíduos recebam o melhor tratamento existente no mundo para o monitoramento das suas condições de saúde. A nova proposta pretende que sejam oferecidas as melhores opções disponíveis no local onde a pesquisa é realizada. “Não é só uma troca de palavras. É uma medida que visa diminuir os custos de pesquisa e que prejudicará os países mais pobres. O Brasil é contra”, afirma.

ISTOÉ – O que é bioética e qual seu papel no cotidiano?
Volnei Garrafa –
Antes da Segunda Guerra Mundial, a humanidade tinha mais tempo para refletir sobre seu modo de ser e proceder diante das questões morais. Mas o desenvolvimento científico e tecnológico que ocorreu depois nos roubou esse tempo natural de amadurecimento. A bioética, surgida nos anos 70, veio para auxiliar na tomada de decisões diante de problemas antigos, como a exclusão social, ou de questões novas, decorrentes desse desenvolvimento, sobre as quais nunca havíamos pensado. Ela oferece ferramentas teóricas e metodológicas baseadas na análise dos fatos sob vários pontos de vista, na separação entre Estado e religião e na complexidade do conhecimento

ISTOÉ – Quais os temas centrais da bioética?
Garrafa –
A avaliação de situações persistentes (como o aborto e o racismo) e das que chamo de emergentes, como a clonagem, os transplantes e as técnicas reprodutivas. Mas existem cientistas que reduzem a bioética ao estudo exclusivo desses últimos temas.

ISTOÉ – O sr. e alguns colegas defendem a criação de uma bioética para os países do Hemisfério Sul. Por quê?
Garrafa –
Durante anos, importamos ciência e tecnologia do Hemisfério Norte de uma maneira acrítica. E agora estamos fazendo o mesmo com a ética, utilizando pacotes de bioética importados de países como Estados Unidos para analisar projetos de pesquisas com seres humanos. Existem grandes esforços e uma forte pressão, liderada por alguns organismos ligados ao governo dos Estados Unidos, caso do Instituto Nacional de Saúde (NIH), para flexibilizar os protocolos desse tipo de estudo. Esta semana, por exemplo, esses grupos vão propor uma emenda à Declaração de Helsinque para alterar o item sobre os cuidados com a saúde do participante das pesquisas. Hoje, a declaração determina que os voluntários recebam os melhores tratamentos existentes no mundo. Mas querem que seja dado a eles o melhor atendimento disponível na região. O Brasil é contra. Firmamos essa posição há três semanas em uma reunião da qual participaram a Associação Médica Brasileira, o Conselho Federal de Medicina e o Ministério da Saúde. E embora não existam regras distintas para a pesquisa em países ricos ou pobres, o NIH e pesquisadores de algumas indústrias farmacêuticas ainda sugerem estudos para serem feitos nos países em desenvolvimento em condições diferentes daquelas que seriam oferecidas nos países ricos. Eles acreditam que o uso de metodologias diferenciadas é eticamente aceitável em países economicamente diferenciados. Essa abordagem é chamada de duplo standard. Antes de serem colocados em prática, porém, esses projetos de pesquisa precisam ser avaliados por comitês de ética. E cabe aos especialistas da comissão analisarem a metodologia para garantir que ela preserve os direitos dos participantes do estudo.

ISTOÉ – Mas que poder tem um organismo como o NIH sobre as autoridades de saúde de outros países? O sr. pode explicar como se dá essa interferência?
Garrafa –
Não há uma influência direta, mas uma série de ações para convencer pesquisadores da validade dos métodos e para formar novas gerações que continuem agindo nesses moldes. Muitos bilhões de dólares estão sendo investidos nisso. Na Argentina, por exemplo, houve um curso para capacitar profissionais de saúde a fazer estudos com seres humanos, baseados em metodologias que ainda utilizam, por exemplo, o placebo (comprimidos ou injeções com ação inócua). No entanto, hoje esse é um método admitido apenas em situações muito específicas.

ISTOÉ – Quais são os limites para a utilização do placebo?
Garrafa –
O uso do placebo é permitido em casos de doenças para as quais ainda não se tenha tratamento ou diagnóstico conhecido, como foi a Aids no início da epidemia, na década de 80. Em outros casos, resguardadas situações a serem discutidas caso a caso, não se justifica.

ISTOÉ – E de que forma os abusos podem ser contornados?
Garrafa –
É necessário cada país criar referenciais próprios para lidar com as diferenças. O termo de consentimento informado (documento em que os participantes das pesquisas afirmam que estão cientes das condições do estudo), por exemplo, é aceito internacionalmente. A premissa de que as pessoas compreendam seu conteúdo é válida em países nos quais a escolaridade é de 100% e naqueles onde as pessoas têm nível socioeconômico alto. Mas, em um país como o nosso, com milhões de analfabetos, isso deve ser adotado com reservas. A pessoa pobre assina qualquer acordo em troca de atendimento médico-hospitalar. Por isso, não é suficiente que ela tenha sido informada, mas que entenda a informação. Diante disso, a Conep definiu para o Brasil a expressão “consentimento livre e esclarecido”. É um instrumento novo e importante que esperamos cumprir esse papel. Há também outras situações delicadas a serem examinadas. Uma delas é o pagamento feito pelos institutos ou indústrias aos pesquisadores que coordenam as pesquisas. No Brasil, recebem-se quantias entre US$ 1 mil e US$ 3 mil por participante. Acho que esses contratos deveriam ser firmados com instituições como universidades e hospitais, e não com pessoas físicas, e esse dinheiro deveria servir para financiar outras pesquisas e bolsas de estudo. Para discutir esse e outros assuntos importantes na virada do milênio, como a utilização das células-tronco, é que o Brasil precisa formar urgentemente uma Comissão Nacional de Bioética.