Eram 6h da manhã de 11 de setembro de 1973 quando fuzileiros navais chilenos ocuparam a cidade balneária de Valparaíso, começando assim uma fulminante operação militar para derrubar o presidente socialista Salvador Allende. Às 9h30, na capital, Santiago, soldados e tanques do Exército abriram fogo contra o Palácio de La Moneda, a sede do governo, de onde o presidente prometera resistir até a morte. Por volta do meio-dia, caças Hawker Hunter da Força Aérea bombardearam o La Moneda, criando a cena que simbolizaria o dramático fim de uma era de sonhos generosos. Três horas depois, Allende se suicidaria para evitar ser capturado ou morto pelos militares rebelados. O golpe, que seria assumido pelo comandante do Exército, general Augusto Pinochet – que na verdade aderiu na última hora –, provocou cerca de dez mil mortes apenas no primeiro mês. Ao longo de 17 anos de vigência, o regime pinochetista produziu ainda mais de três mil “desaparecidos”. Trinta anos depois, enquanto Allende é homenageado pelo atual presidente chileno, Ricardo Lagos, o veleiro La Esmeralda, que serviu de centro de tortura e prisão em Valparaíso, foi alvo de protestos ao aportar no Rio de Janeiro, na semana passada. Ao mesmo tempo, descobre-se que, naqueles trágicos dias, diplomatas brasileiros navegaram por mares nunca dantes navegados: atuaram nos bastidores da conspiração que provocou a derrocada do governo constitucional e a consolidação da ditadura liderada por Pinochet.

O primeiro e mais importante diplomata a dar respaldo aos conspiradores foi o próprio embaixador do Brasil no Chile, Antônio Cândido Câmara Canto, que chefiou a representação entre 1968 e 1975. O outro é o diplomata de carreira Jacques Claude François Michel Fernandes Vieira Guilbaud, assumido “araponga” do serviço de informações implantado
pelo regime militar brasileiro em suas embaixadas. Guilbaud chegou
ao Chile em 1975, para “monitorar” a movimentação de exilados brasileiros. Posteriormente, foi demitido do Itamaraty por abandono
de emprego, mas conseguiu distorcer tanto a sua trajetória que recebe uma milionária indenização do governo federal, como se tivesse perdido
o emprego por perseguição política.

Nome de rua – Anticomunista convicto, Câmara Canto ficou famoso por entrar no sofisticado Club de la Unión, em Santiago, poucos dias depois do golpe e gritar, para uma platéia repleta de militares: “Ganhamos!” Recentemente, o jornal chileno La Tercera revelou que o embaixador era conhecido como “o quinto membro da junta”, dada sua profunda afinidade com o quarteto militar que assumiu com a derrubada do governo e o fechamento do Congresso. Os laços de ternura permaneceram mesmo depois de sua morte, em 1977, quando o embaixador virou nome de rua em Santiago. Os serviços que prestou à ditadura chilena foram muitos. Além de ter sido o primeiro diplomata a reconhecer a junta militar, Câmara Canto fez gestões para a liberação de um empréstimo emergencial de US$ 100 milhões do Brasil ao governo do Chile. No mesmo dia do golpe, a embaixada
que comandava começou a distribuir 70 toneladas de medicamentos
e alimentos, a título de “ajuda humanitária”. A operação só terminou
no dia 26 de setembro. À época exilado em Santiago, o ex-sargento
do Exército e ex-guerrilheiro José Araújo de Nóbrega conta que soube
da chegada de um avião cargueiro Hércules do Brasil nos dias que antecederam o golpe, mas só mais tarde entendeu sua função. “Quando fui preso, achei que seria deportado junto com outros exilados brasileiros naquele avião”, lembra Nóbrega.

 De acordo com o La Tercera, Câmara Canto teria também sido fundamental no papel que o Brasil desempenhou, como mediador entre os militares chilenos e o governo nacionalista do general Juan Velasco Alvarado (1968-1975), no Peru. O golpe só teria sido desfechado depois que a neutralidade de Alvarado foi garantida. Os generais chilenos temiam que os peruanos utilizassem o pretexto de uma guerra civil para atacar o Chile e retomar a província de Concordia, que o Peru perdera ao ser derrotado na chamada Guerra do Pacífico, quase 100 anos antes. Não há dúvida, porém, de que a intervenção estrangeira a favor dos militares golpistas mais contundente e eficaz foi a dos Estados Unidos. Paradoxalmente, um ex-embaixador americano no Chile foi um dos primeiros a tornar pública a atuação de Câmara Canto. “O embaixador brasileiro no Chile era muito admirado pelos militares chilenos. Ao almoçarmos juntos no final de março de 1973, ele me fez uma série de sugestões relevantes (das quais me esquivei), tentando me atrair para um plano, coordenado pelas duas embaixadas, de unir esforços visando ao fim do governo Allende”, garantiu Nathaniel Davis no livro Os dois últimos anos de Allende, publicado em 1985.

No Brasil, a participação do embaixador no movimento já havia sido denunciada pelo atual prefeito do Rio de Janeiro, Cesar Maia, outro
antigo exilado no Chile. Em uma carta aberta ao Itamaraty, ele revelou que, em 1973, a festa de Sete de Setembro da embaixada brasileira no Chile servira como palco para a conspiração contra o governo Allende. “Nossa embaixada foi transformada num mero cofre”, acrescentou o prefeito, afirmando que amigos do embaixador haviam depositado na representação diplomática suas jóias e outros objetos de valor. Por
outro lado, os brasileiros que precisaram de ajuda encontraram as
portas da embaixada fechadas.

Embora comece a se destacar como o principal elo brasileiro com os militares golpistas, Câmara Canto estava no Chile no papel de embaixador. Seu comprometimento com o regime de força deu-se por opção ideológica. Outros diplomatas cumpriram
sua missão sem se envolver com desmandos. Eram obrigados, no entanto, a dividir espaço com aliados dos generais brasileiros.
Durante o regime militar (1964-1985), as representações brasileiras no Exterior “ganharam” um setor dos órgãos de segurança, que usava sua infra-estrutura, mas não se reportava ao embaixador.

“Esquadrão da morte” – Foi na condição de “araponga” que o diplomata Jacques Guilbaud serviu no Chile. Cumprida a “tarefa” de espionar exilados, ele seguiu para Portugal em 1977. “Minha missão seria a de apurar, isto é, confirmar o envolvimento de diplomatas brasileiros com os soviéticos (KGB)”, escreveu Guilbaud ao advogado Francisco Arrais Rosal, referindo-se à polícia secreta da extinta União Soviética. Apesar de ter desempenhado um papel pouco nobre no período, Guilbaud conquistou do governo federal, no fim do
ano passado, uma pensão mensal vitalícia de R$ 8.500, além de uma indenização de R$ 955 mil, como se tivesse sido vítima de perseguição pela ditadura brasileira.

O embaixador Raul Fernando Leite Ribeiro, que atualmente responde pelas relações internacionais da Prefeitura do Rio de Janeiro, conheceu Guilbaud em Portugal. “Esse ex-colega era um homem que trabalhava para o regime militar, jamais sofreu qualquer tipo de perseguição”, atesta Leite Ribeiro. “Nada justifica o governo conceder-lhe essa indenização fabulosa, pois ele foi demitido por ser relapso.” Integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Suzana Lisbôa faz eco à indignação do embaixador Leite Ribeiro. “É um escândalo que um homem comprometido com regimes assassinos seja premiado pelo governo brasileiro”, reclama Suzana.

Na versão de Guilbaud, ele teria sido afastado do serviço público porque descobriu um esquema de superfaturamento na compra da sede da Embaixada do Brasil em Portugal. Pelos registros do Itamaraty, o diplomata foi demitido em 1980, por abandono de emprego, quando servia no Consulado de Toronto, no Canadá. O embaixador Rubens Ricupero, hoje secretário-geral de Comércio e Desenvolvimento das Nações Unidas (Unctad), em Genebra, na Suíça, presidiu a comissão que se deslocou para Toronto para apurar os motivos da ausência do diplomata. Como Guilbaud não atendia o telefone, um funcionário foi enviado a sua casa, mas ele se recusou a assinar uma citação. De uma segunda vez, quem atendeu foi a empregada, que ficou de chamar Guilbaud. “Passou um certo tempo e a rua foi invadida por carros de polícia, que prenderam nosso representante. Guilbaud chamara a polícia dizendo que éramos do esquadrão da morte e íamos exterminá-lo”, relata Ricupero. Curiosamente, o secretário-geral não foi ouvido pela Comissão de Anistia que decidiu pela indenização de Guilbaud. Questionado sobre o episódio, o atual presidente da comissão, Marcelo Lavenere, disse que poderá reavaliar o caso, considerando as revelações de ISTOÉ.

 

A última utopia

Salvador Allende Gossens foi a encarnação da última utopia trágica da América Latina, a “via chilena para o socialismo”, que pretendia uma transformação socialista da sociedade sem arranhar as liberdades democráticas nem sair dos trilhos do Estado de Direito. Tratava-se de um experimento único: até então, todas as revoluções socialistas – Rússia, China, Albânia, Cuba – tinham sido forjadas a ferro e fogo, através da subversão violenta dos regimes estabelecidos. “A tarefa é de uma complexidade extraordinária, porque não há precedentes em que possamos nos inspirar”, diagnosticava o presidente Allende em 1971. As experiências políticas aparentemente similares, como as Frentes Populares – aliança eleitoral entre partidos democráticos, socialistas e comunistas – dos anos 30 na Europa, e no próprio Chile, na verdade não defendiam programas revolucionários, mas eram antes coalizões formadas para constituir governos para enfrentar a ameaça do nazi-fascismo.

Na época de Allende, apesar do clima de grande euforia que sua eleição provocou entre as esquerdas mundiais, não foram poucos os intelectuais radicalizados e as organizações de extrema esquerda que criticaram o governo da Unidade Popular (UP) pelo que consideravam zelo excessivo para com a “legalidade burguesa”. Num clima ainda muito próximo da rebelião estudantil de 1968, cobrava-se do presidente socialista maior empenho em “armar as massas”, fosse
para resistir às tentativas de golpe da extrema direita, fosse para rasgar a institucionalidade e implantar no Chile um regime à cubana. “Reformismo”, a acusação que pesava contra Allende, soava como palavrão aos ouvidos dos herdeiros de 68. E no Chile, à medida
que o governo da UP sofria violentas pressões do empresariado, da direita e dos militares – com o apoio desavergonhado dos EUA –, as organizações de extrema esquerda, na sua ânsia de “aprofundar o processo revolucionário”, iam se tornando os coveiros do governo popular. “Radicais e socialistas – do próprio partido do presidente – pareciam mancomunados para negar a Allende, por sectarismo
e por cegueira, toda flexibilidade tática que pudesse abrir os horizontes da ação política indispensáveis para fazer frente à
contra-revolução e à sedição militar”, escreveu Darcy Ribeiro
pouco depois do golpe de Pinochet.

O 11 de setembro de 1973 foi traumático para as esquerdas. Se a morte de Che Guevara nas selvas bolivianas em 1967 marcou o fim do ciclo romântico-guerrilheiro cujo modelo era Cuba, o violento desfecho da “via chilena”, por outro lado, paradoxalmente abriu o caminho para a aceitação do “reformismo” pela maior parte das organizações esquerdistas. Foi o Partido Comunista Italiano (PCI), então o mais poderoso do Ocidente, que tirou do Chile a lição de que um governo de esquerda democrática jamais poderia se isolar da classe média, nem governar contra metade da nação. Disso surgiu a idéia de um “compromisso histórico”, um governo de coalizão entre as maiores forças políticas do país: comunistas e democratas-cristãos. Tradução: mudanças, só dentro do capitalismo; socialismo, nunca mais, nem mesmo pela via democrática. A lição foi tão bem assimilada que, 30 anos depois, o problema das esquerdas não é mais a “doença infantil” do radicalismo, mas talvez a doença senil do centrismo, que tende a descaracterizá-las como proposta alternativa, como aconteceu com os governos socialistas do francês François Mitterrand (1981-1995) e do espanhol Felipe González (1982-1996). Lula e o PT – que nunca foram revolucionários, pondere-se – que se cuidem.

Cláudio Camargo