O presidente Luiz Inácio Lula da Silva mostrou ao País, na manhã de quinta-feira 4, o seu novo boné: o de capitão do barco Brasil. “A nau tem comandante. E não vai ser uma onda – até porque não sou surfista – que vai me fazer tomar medidas precipitadas”, desabafou Lula num encontro com empresários, sindicalistas e políticos que compõem o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, horas depois da aprovação, pela Câmara dos Deputados, da reforma tributária. A travessia da madrugada, após uma tormentosa negociação que colocou o Planalto em confronto direto com governadores, prefeitos e ameaçou afundar o entendimento desenhado com a base aliada, acabou desaguando na aprovação consagradora com os votos de 378 deputados – 70 além do número necessário.
“Os parlamentares foram exemplares e os governadores, muito importantes”, comemorou Lula.

Em apenas duas semanas, o barco do capitão Lula atingiu dois portos que a nau do comandante FHC não alcançou em oito anos de uma viagem arrastada: a aprovação, na Câmara, das reformas da Previdência e tributária. “Nossa política econômica não pode ser o sonho do (ministro Antônio) Palocci (Fazenda) e de todos nós, mas é aquela que podemos fazer neste momento”, admitiu o presidente, agora ancorado na sólida certeza de que tem voz e voto para aprovar seus projetos no Congresso e singrar, sem sobressaltos, os três anos e quatro meses de seu mandato. Ao final das negociações com os governadores, liderados pela posição mais dura do mineiro Aécio Neves (PSDB) e do gaúcho Germano Rigotto (PMDB), o rolo compressor do governo tinha esmagado os rebeldes, arrebatando metade dos votos da bancada do PSDB e um quinto do PFL, a face mais dura da oposição. Um dia antes da batalha em plenário, o Planalto garantiu a calmaria dos números com um almoço de Lula com a cúpula do PMDB, carimbando o transporte do partido para o Ministério em outubro. Só três dos 77 deputados do PMDB não votaram com o PT. Mais uma vez, ficou visível o estilo Lula: negociar sempre. “No Brasil, há muita gente que não está habituada à negociação. Então qualquer acordo é interpretado como se fosse do ‘é dando que se recebe’, como se fosse uma coisa maléfica”, desabafou.

A exibição de força do governo na Câmara inflou as velas da economia. Na quinta-feira, a aprovação da reforma afundou o risco-Brasil para 662 pontos, o mais baixo desde 6 de setembro de 2000, amarrou o dólar na cotação mais baixa desde julho passado (R$ 2,930 na compra e R$ 2,932 na venda), fez mergulhar os juros futuros e desfraldou no mercado americano a cotação do C-Bond, os títulos públicos que medem a força da economia brasileira no mercado internacional. Antes da bonança, o governo viveu a tempestade de denúncias sobre loteamento de cargo na administração. Começou com a desastrada demissão de Antônio Carlos de Andrade, da direção da Fundação Nacional da Saúde, em represália à oposição de sua mulher, a deputada federal Maninha (PT-DF), à reforma da Previdência. Continuou com a crise no Instituto Nacional do Câncer (Inca), onde a demissão coletiva de médicos denunciou a gestão desastrada do PSB num hospital que sempre foi exemplo de eficiência. A crise foi contornada em 48 horas com a reposição dos estoques de medicamentos e a demissão do ex-ministro Jamil Haddad da direção do Inca.

Boatos – A crise da Saúde pipocou ainda na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com o pedido de demissão de nove consultores de um conselho técnico de medicamentos, levantando dúvidas sobre critérios de ocupação pelo PT dos escaninhos do poder. Tanta confusão na área da Saúde alimentou rumores sobre o vigor político do ministro Humberto Costa, mas os boatos sumiram antes
mesmo da aprovação da reforma tributária, numa cerimônia no Itamaraty onde Lula trocou abraços e afagos com seu auxiliar. Na quarta-feira 3, outra crise administrativa. Com a exoneração da chefe do Centro de Sensoriamento Remoto do Ibama, Lindalva Cavalcante, 16 assessores pediram demissão porque consideraram a substituição inadequada
sob a suspeita de que o substituto, Edward Elias Júnior, não preenche
as qualificações técnicas.

O PT ocupa 70% dos 22 mil cargos de confiança na área federal – uma prática mais velha do que a República. O Planalto se defendeu lembrando que, dos 1.321 cargos comissionados no Ministério da Saúde, 589 (ou 44,5%) são ocupados por pessoas que vêm do governo FHC. Só 732 postos (ou 55,4%) foram trocados no governo Lula. Não adiantou: enquanto a reforma avançava no plenário da Câmara, prosperava nos corredores do
Senado um pedido de CPI do líder de oposição, Artur Virgílio Neto
(PSDB-AM), para investigar o loteamento de cargos. Até Paulo Paim
(PT-RS), vice-presidente do Senado, chegou a assinar o pedido de
CPI, mas horas depois retirou a assinatura, sem desfazer a impressão
de que o tema assombra até os petistas. O senador Eduardo Suplicy
(SP) foi claro, na segunda-feira 1º, ao confessar o desconforto com
o loteamento de cargos e com a concentração de poder na Casa Civil, onde impera o ministro José Dirceu: “Não acho saudável. E o PT era crítico dessa forma de agir”, condenou o senador. “Essa opinião me
deixa estarrecido,” rebateu o ministro.

Alheia à borrasca que ronda as nomeações petistas, a cúpula do PMDB teve, enfim, o encontro tão esperado com o timoneiro Lula. Há quase um ano, o desembarque do PMDB no governo vinha sendo impedido por ventanias e trovoadas de radicais petistas. Na reunião da terça-feira 2, Lula explicitou que o partido sairá do tombadilho para ficar na proa da nau petista a partir da primeira quinzena de outubro e ocupará duas pastas na Esplanada dos Ministérios. Lula concordou em antecipar a troca da tripulação governista como forma de ancorar os votos peemedebistas na reforma. “Quero fazer a reforma brevemente. Agora é hora de avaliar o governo. Não vou criar secretarias para o PMDB, vou tratar o partido de acordo com seu tamanho”, disse Lula ao ansioso quinteto peemedebista.

“Imexíveis” – O PMDB cobiça a pasta da Integração Nacional para o líder da Câmara, Eunício Oliveira (CE), e a das Comunicações para um senador. A cúpula do partido saiu convencida de que pode chegar lá depois de ouvir um comentário de Lula: “Tem partido que não merece estar no Ministério.” Soou como recado ao rebelde PDT, do ministro Miro Teixeira. No horizonte da reforma ministerial, recorrendo ao neologismo do ex-ministro Rogério Magri, Lula frisou que só quatro ministros são “imexíveis”: Antônio Palocci, José Dirceu (Casa Civil),
Luís Gushiken (Comunicação de Governo) e Luís Dulci (Secretaria Geral
da Presidência). Com a fidelidade demonstrada na votação da reforma tributária, o PMDB rema seguro para ocupar os camarotes federais.
Mas o partido avisa: quer ministérios verticalizados, ou seja, controlando o segundo e o terceiro escalões. “Se formos para as Comunicações,
claro que teremos os Correios”, aposta um cacique do partido. Para
não naufragar na jornada, o partido joga com a votação das reformas
no Senado. Antes de aprovar a última, o PMDB espera vislumbrar
a Esplanada pelas escotilhas ministeriais. O toma-lá-dá-cá será
praticado à exaustão.

Ideal – A travessia mais turbulenta já passou, mesmo com a insatisfação dos empresários. “O texto da reforma tributária pode abrir espaços para aumento de carga tributária”, protesta o deputado Armando Monteiro Filho (PTB-PE), presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), que votou contra a emenda. O empresariado pretende fazer alterações no Senado. Os governadores Aécio Neves (PSDB-MG) e Geraldo Alckmin (PSDB-SP) também querem fazer alterações. “Vamos continuar trabalhando no texto, que ficou longe do ideal”, criticou Alckmin. Mas há outras turbulências no horizonte.

Depois da Câmara, os senadores querem mexer na reforma da Previdência. Até o petista Paim quer mudar o projeto e acabar com a cobrança de contribuição dos inativos. No caso da tributária, o governo terá que surfar uma onda de mais de 40 emendas e destaques sobre o tema nesta semana, em votação do segundo turno. Depois, o projeto que trata dos impostos irá ao Senado, onde enfrentará as mesmas
dificuldades. O Planalto teme que os projetos sejam desfigurados.
Com o barco reforçado pelos votos do PMDB, o governo vai atravessar
o mar das reformas política e trabalhista, que prometem estragos
no casco petista.

Na trabalhista, novo racha no PT será inevitável, com os mesmos dissidentes avisando que são contra. Na política, Lula terá que acalmar seus comandados, que podem não concordar com outros dois projetos: o que muda o sistema de falência das empresas e outro que regulamentará o uso de sementes transgênicas. Antes de chegar a estes mares, em outubro o barco do capitão Lula terá que ultrapassar os arrecifes do FMI.

 

Outra raposa no galinheiro

Primeiro foi o caso do ministro Iram Saraiva, ex-senador do PMDB, que renunciou ao cargo vitalício para não ser expulso por seus próprios pares, acusado de corrupção. Agora, o Tribunal de Contas da União (TCU), órgão que fiscaliza as contas públicas, pode viver um novo escândalo. Indicado pelo PMDB para substituir Saraiva, o senador Luiz Otávio (PA) corre o risco de assumir e depois ser afastado, se for condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por desvio de verbas do BNDES equivalentes a US$ 13 milhões. A bandalheira foi denunciada por ISTOÉ em sua edição 1585, de 16 de fevereiro de 2000. A empresa Rodomar, que ele dirigia, pegou o dinheiro do BNDES para construir 13 balsas de transporte fluvial. Nada foi feito e o dinheiro sumiu. Na época, o senador sem partido, Luiz Otávio disse que o processo era obra de seu inimigo político Jader Barbalho. Hoje, no mesmo PMDB de Jader, ele acha que os plenários da Câmara e do Senado poderão aprovar seu nome, como fez a Comissão de Assuntos Econômicos
por 21 votos a um e uma abstenção. Mas sua aprovação não é fácil. Na quinta-feira 4, o juiz federal Guilherme Resende Brito deu liminar
a uma ação popular suspendendo a nomeação. O juiz considerou
Luiz Otávio inidôneo para a função de julgar contas públicas. O presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), irritou-se. Para Sarney, a decisão foi “extemporânea e inconstitucional” e fere a independência entre os poderes.

Eduardo Hollanda