Truman Capote, o genial escritor americano, publicou seu último livro Música para camaleões na alvorada dos anos 80. Os amigos já não acreditavam que ele pudesse livrar-se das drogas e das compulsões, para produzir alguma obra, digna de seu fulgurante talento literário, mas Capote conseguiu não só frustrar as funestas expectativas de todos como permanecer por 16 semanas consecutivas na lista dos mais vendidos. O livro é uma coletânea de textos, produzidos em sua grande maioria durante o ano de 1979, quando o autor teve seu último espasmo de criatividade.

O conto que dá nome à coletânea é maravilhoso. Nele, Truman conhece uma fascinante mulher na Martinica e ela encanta seus convidados tocando excelente música no piano, com as vidraças abertas à brisa da noite. Aos poucos, camaleões começam a surgir de todos os lados e posicionam-se no jardim, imóveis, cada qual guardando seu lugar no concerto. Os camaleões, no fim das contas, também sabem apreciar a boa música.

Os anglo-saxões perceberam antes de todos (e se não perceberam, perseveraram) que não só os camaleões, mas todo o reino animal é regido pelo batimento. O próprio pulsar dos corações nos impulsiona com uma noção primeira de ritmo que, convenhamos, é a base para qualquer improvisação. Investiram, pois, no teatro musical, já que a música chega mais rápido no coração de sua audiência. E, uma vez o público conquistado, aí a palavra ganha vida própria e não tem mais limite de atuação. E um povo que tem um teatro forte, tem um espelho bastante eficaz, nós já sabemos disso.

Capote voltou a ganhar espaço em minha mente, saído das brumas do labirinto, desde que comecei a ensaiar Hairspray, o musical da Broadway, nas antigas instalações da escola Macunaíma, em algum lugar entre o teatro Sérgio Cardoso e a Brigadeiro. Não sei se aquele lado pertence ao bairro da Bela Vista, mas, se é o caso, há muito se foi a beleza. Restou, naquela zona sufocada da cidade, um ar de abandono e solidão que se espalha pelas ruas e que cresce com o correr do dia, invadindo o olhar dos moradores que se deixam ficar nas esquinas, ou nas portas das casas deterioradas, à espera da noite.

E há muitas crianças. Durante todo o período do ensaio, elas chilreiam pela vizinhança, nas brincadeiras de sempre. Ultimamente nem tanto, porque, como fomos obrigados a ensaiar com as portas todas abertas por causa da tinta fresca, a música foi atraindo a garotada da área que, a princípio, mostrava apenas os olhos, brilhando através das frestas.

Como eram muitos e a excitação do olhar proibido causava uma confusão ainda maior, resolvi convidá-los formalmente a assistir aos ensaios. Agora, volta e meia temos uma plateia de crianças que sentam em silêncio num canto da grande sala de ensaios e assistem ao elenco descobrir a voz e a personagem dia a dia.

Vê-las ali, amontoadas num canto da sala, enlevadas com a mágica do teatro, tem sido um presente e tanto nesses últimos dias. É assim que deveria ser, eu penso. Aos poucos, uma ou outra se apresenta e, dia desses, já quase no fim do dia, uma menina de seus oito anos correu em minha direção e cantou uma frase de uma das músicas com perfeita afinação. Eu escuto sinos, ela disse. Eu achei que ela tinha toda razão, porque olhando para a sua infância desamparada e para a chama que a música despertara em seus olhos, eu também os ouvia cristalinos, no lusco-fusco da grande cidade.