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PIONEIRA A americana Sylvia Beach diante da livraria Shakespeare and Co., que se tornou ponto de encontro de artistas

Não se falava em outra coisa naquele dia de verão na rive gauche parisiense. Paris inteira estaria na noite de autógrafos de Kiki de Montparnasse, a famosa modelo de pintores como Amedeo Modigliani, Maurice Utrillo e Chaim Soutine, eternizada em fotos vanguardistas de Man Ray.

A "rainha" do bairro de boêmios e intelectuais lançaria Les souvenirs de Kiki (As recordações de Kiki) no Falstaff, bar comandado pelo ex-boxeador Jimmi Charters, cujas memórias foram prefaciadas pelo escritor americano Ernest Hemingway. Tatie, como o escritor era conhecido nos anos 1920, assinou também a apresentação das frescas lembranças de Kiki.

O evento prometia. Quando ela chegou saltitante, a fila de marmanjos já estava formada. "Como se espalhou pelo bairro a notícia de que por 30 francos se poderia ter um exemplar do livro, um autógrafo e ainda por cima um beijo, os homens esqueceram cerveja, encontros e dignidade para ir até lá a galope", escreve Jean-Paul Caracalla no livro Os exilados de Montparnasse (Record, 294 págs., R$ 40). A obra trata dos chamados anos loucos parisienses. E esse bairro boêmio era o seu epicentro.

Caracalla é um famoso autor de guias literários sobre a capital francesa e possui um bom faro para a mundanidade e a frivolidade. E não teria mesmo como reconstituir esse período de efervescência da literatura e das artes sem se ater a elas. A maioria dos estrangeiros que escolheram as baratas águas-furtadas de Montparnasse para morar era jovem, aventureira e estava também em busca da vagabundagem artística.

Eles passavam, inclusive, mais tempo jogando conversa fora em bares e cafés como La Closerie de Lilas, La Coupole e Select. Segundo o autor, após a Primeira Guerra mais de 250 artistas anglo-americanos fixaram-se na cidade. Pesou na escolha o câmbio vantajoso (um dólar valia 55 francos), as viagens transatlânticas baratas e, claro, a inexistência de qualquer lei seca.

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Trauma sylvia e James Joyce. ela tinha enxaqueca só de pensar na capa de ulisses. O problema era o tom do azul

A primeira figura a dar o ar da graça em Os exilados de Montparnasse é a americana Gertrude Stein, cuja casa de dois andares no histórico número 27 da rue des Fleurus virou point instantâneo. O pintor espanhol Pablo Picasso não saía de lá e fez um retrato da anfitriã que hoje é conhecido em todo o mundo. O outro ponto de encontro do bairro era a livraria Shakespeare and Company, criada pela americana Sylvia Beach. Como era especializado em publicações de língua inglesa, o charmoso endereço tornou-se parada obrigatória para toda essa turma – Gertrud incluída.

Ela, aliás, foi a primeira cliente americana da livraria, que também funcionava como biblioteca. Apareceu numa tarde acompanhada da amante, Alice B. Toklas. Sylvia notou que ela usava um estranho chapéu, que mais parecia uma compoteira de frutas.

Também cliente dos primeiros anos foi Hemingway, um jornalista que se mudou para Paris com certas ambições literárias. Tinha 22 anos e nenhum tostão no bolso. Ao fazer sua ficha na livraria, levou para casa romances de Ivan Turgueniev, D. H. Lawrence e Liev Tolstoi. Sylvia ironizou: "Com tanta leitura, não volta tão cedo." Ele voltou rápido e ficou íntimo da livreira. Até lhe mostrou o seu ferimento de guerra, resultado da explosão de uma granada na campanha da Itália. Em pouco tempo, os Hemingway (ele já era casado), Sylvia e Gertrude tornaram-se amigos.

Ficaram famosos os passeios da turma a bordo do Godiva, o Ford modelo T de Gertrude – ela, curiosamante, se recusava a dar marcha a ré no carro. As amizades desses jovens libertários e cheios de sonho atravessam todo o livro e a que rende mais assunto é entre F. Scott Fitzgerald e Hemingway, autores, respectivamente, dos romances Suave é a noite e Paris é uma festa, esse último sobre os anos de muito álcool e páginas romanceadas.

Até a empresária da área dos osméticos Helena Rubinstein entrou na dança. Meio por acaso, claro, já que era casada com um editor aficionado pela literatura, que publicou O amante de lady Chaterley, de Lawrence. Sobre Hemingway ela dirá: "É um gritalhão amado pelas mulheres, mas não por mim." Sedutor também era Fitzgerald, casado com Zelda, que colocou no anedotário da época o "golpe da orquídea". Bêbado no bar do Ritz, ele ficou fascinado por uma mulher, à qual presenteou com uma orquídea comprada às pressas em um florista de rua.

A mulher recusou a flor e Fitzgerald, desapontado, comeu cada uma de suas pétalas na sua frente. Diante da excentricidade, a mulher o encontrou mais tarde, às escondidas. Nem todos os exilados de Montparnasse eram adeptos das bebedeiras. O irlandês James Joyce sempre dispensava o vinho, virando a taça de ponta cabeça. A publicação de sua obra-prima Ulisses pela Shakespeare and Co. revela os caprichos do autor. Ele atrasou a edição do livro porque queria que a capa tivesse um tom de azul idêntico ao da bandeira da Grécia. Sylvia desenvolveu uma enxaqueca ao ver o símbolo nacional grego.

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Amizade Fitzgerald e Hemingway dividiram mesas de bares e ideias sobre literatura. um revisava o texto do outro, mas competiam