Para a embaixadora dos EUA no Brasil, a maioria dos árabes que envia dinheiro ao Oriente Médio o faz por interesses nobres

Donna J. Hrinak foge ao tradicional perfil dos representantes dos Estados Unidos no País. Em vez de ser, como tantos embaixadores no passado, um empresário amigo do presidente americano de plantão, ela é diplomata de carreira. Em 29 anos de serviço no Departamento de Estado, Hrinak acumulou uma sólida experiência sobre a América Latina, onde serviu nada menos que 26 anos em postos variados no Brasil, Venezuela, Colômbia e Bolívia. O cargo de embaixadora no Brasil é o terceiro que exerce, tendo sido antes a representante americana na Bolívia e na Venezuela. Falando um português fluente, fruto de uma permanência anterior de mais de dez anos no Brasil, ela recebeu ISTOÉ para uma conversa de uma hora em que surpreendeu ao garantir que não existem células terroristas árabes na região da Tríplice Fronteira (Foz do Iguaçu, Ciudad del Este e Puerto Iguazú), paranóia alimentada anos atrás pelos próprios Estados Unidos. A embaixadora também acha que a Alca ainda vai ter muita negociação e a data de janeiro de 2005 para entrar em vigor serve mais como referência do que uma coisa imutável. “Sem uma data para balizar as negociações, elas se estenderiam pela eternidade”, ponderou. Donna Hrinak considera que a solução para o conflito de mais de 40 anos na Colômbia só pode ser a negociação. Sobre a Venezuela, acha que o referendo servirá para dar uma solução democrática à disputa entre o presidente Hugo Chávez e a oposição. Ela garantiu ainda que o governo dos EUA autoriza a venda de mísseis de última geração, numa tentativa de ganhar, com os caças F-16, a milionária concorrência dos novos jatos da FAB. Donna Hrinak tornou-se, no final do ano passado, assunto das colunas sociais ao aparecer numa audiência com o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva com o nariz engessado por causa de uma plástica. “O presidente eleito me chamou. Tive que ir na hora marcada e pronto, com ou sem curativos no rosto”, afirma. A cirurgia de plástica do nariz tinha terminado três horas antes. A seguir, os principais trechos da entrevista.

ISTOÉ – O atentado contra o prédio onde funcionava a representação das Nações Unidas em Bagdá, que matou o diplomata Sérgio Vieira de Mello, pode representar uma escalada do terrorismo em nível mundial?
Donna Hrinak

O único meio de combater o terrorismo é as nações que respeitam a democracia, os direitos humanos e a liberdade trabalharem contra aqueles que minam e desrespeitam esses valores. Os terroristas não estão atacando um determinado governo, política ou país, mas inocentes ao redor do mundo. Os governos têm a responsabilidade de defender seus cidadãos. Cada ataque terrorista, não importa onde ocorra, nos ensina que todos somos vulneráveis.
 

ISTOÉ – Apesar de o presidente George W. Bush ter declarado o fim da guerra no Iraque há três meses, continuam os atentados contra as tropas americanas e agora até contra a ONU. Como será possível aos Estados Unidos e à ONU reverterem esse quadro?
Donna Hrinak

 Como disse o secretário de Estado Colin Powell, depois
de se reunir com o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, na semana passada: “A ONU continua comprometida e os EUA certamente
continuam comprometidos em ficar no Iraque e assegurar que a
promessa feita aos iraquianos com a eliminação do regime de
Saddam Hussein será cumprida.”
 

ISTOÉ – A sra. teve algum contato profissional com o embaixador Sérgio Vieira de Mello?
Donna Hrinak

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Não, nunca tive nenhum contato profissional com ele, mas conhecia seu trabalho. O sucesso de suas missões anteriores no Kosovo e no Timor Leste provou sua extraordinária capacidade como mediador em tempos de crise. Ele fará muita falta.

ISTOÉ – Comenta-se que o governo americano teria informações sobre a existência de células terroristas na região da Tríplice Fronteira, em Foz do Iguaçu, o que é negado por Brasil e Argentina. O que há de concreto sobre esse assunto?
Donna Hrinak

No passado houve muita especulação, até por gente do governo dos EUA, de que haveria um fluxo de capitais daquela região para o Oriente Médio que poderia terminar nas mãos de grupos extremistas como o Hizbolá libanês. Hoje está claro que não há nenhuma evidência de grupos terroristas na região. Temos uma colaboração estreita com Brasil, Argentina e Paraguai, acompanhando o fluxo de fundos. Acredito que a grande maioria das pessoas que manda dinheiro para o Oriente Médio o faz movida por interesses nobres e legais. Pode, por exemplo, mandar dinheiro para a Autoridade Palestina, que é legalmente constituída como uma organização política e governamental. Todos sabem que há muita criminalidade na Tríplice Fronteira, com tráfico de armas e lavagem de dinheiro. Acho que não há país mais preocupado com isso do que o Brasil, que enfrenta o problema do tráfico de armas nas favelas. Quanto à existência de células terroristas, repito, não temos conhecimento disso. E não sou a primeira a dizer isso. O secretário de Estado Colin Powell já disse isso antes.
 

ISTOÉ – Falando agora sobre economia, as negociações sobre a Alca são um ponto fundamental nas relações Brasil-Estados Unidos. Mas os temas fundamentais para os dois países, como subsídios agrícolas, tarifas não-alfandegárias, propriedade intelectual e compras governamentais, foram jogados, tanto pelos EUA quanto pelo Brasil, para a Rodada Doha da Organização Mundial de Comércio (OMC). Isso não pode representar um esvaziamento da Alca?
Donna Hrinak

Acho que não. Podemos avançar nessas áreas dentro das negociações da Alca e também fazer progressos em negociações bilaterais. Em junho, na reunião de Washington, por exemplo, o presidente Lula e o presidente Bush criaram uma comissão específica sobre agricultura. Ela não tratará dos subsídios, um tema para a OMC, mas já estamos discutindo a fiscalização de saúde de animais
e plantas, fundamental para as exportações de carne fresca que o Brasil quer fazer para os EUA. A idéia é ver quanto progresso podemos fazer nas negociações da Alca, nas negociações bilaterais, sem
entrar nos temas da OMC.
 

ISTOÉ – Mas os EUA estariam dispostos a discutir na Alca esses temas polêmicos, como o aço brasileiro, sobre o qual os EUA impõem tarifas não-alfândegárias? Já houve até uma decisão da OMC condenando os subsídios dados às siderúrgicas americanas.
Donna Hrinak

A próxima reunião preliminar da Alca, em setembro em Cancún (México), vai definir a pauta, os temas para a reunião ministerial de novembro em Miami. Em suma , vai estabelecer o caminho para a última fase das negociações. Algumas questões serão discutidas na Alca, outras, não. Os subsídios agrícolas, por exemplo, nós achamos que
terão de ser discutidos na OMC, onde o Brasil deveria ser nosso melhor aliado. Os dois países têm sérios problemas com os subsídios agrícolas
da Europa e do Japão.
 

ISTOÉ – Mas, nessa área, o Brasil também tem problemas com os subsídios agrícolas americanos…
Donna Hrinak

Mas os subsídios dos EUA são muito mais baixos, são um terço dos da Europa e Japão.
 

ISTOÉ – Um setor que dá certo no Brasil é o agronegócio, que não tem subsídios e compete em pé de igualdade com os países que dão subsídios…
Donna Hrinak

Sim, mas se conseguirmos baixar ou eliminar os subsídios na OMC, podemos ter muito mais flexibilidade no âmbito da Alca. O
Brasil pode ser nosso parceiro.


ISTOÉ – O chanceler Celso Amorim tem dito que, para o Brasil, o conteúdo interessa mais do que o prazo da Alca. Mas na visita do presidente Lula ao presidente Bush, foi reiterada a questão do prazo de entrada em vigor da Alca. Para os EUA, 2005 continua mais importante?
Donna Hrinak

Mantido o prazo de janeiro de 2005, se entende que haverá um acordo bom para os 34 países. Afinal, ninguém vai assinar um acordo prejudicial aos seus próprios interesses. A data foi definida em 1994. E o bom negociador só negocia seriamente quando há um prazo fixo; ninguém vai mostrar todas as suas cartas no início de uma negociação. A data é importante porque os negociadores sabem que terão que mostrar algo nessa data. Creio que a ênfase dada à questão da data depois da visita do presidente Lula a Washington foi um erro, pois os presidentes só fizeram confirmar a data acertada em 1994. Pode-se manter a data e não se negociar nada. Por isso, ambos – conteúdo e data – são importantes. A existência de um prazo fortalece a discussão sobre
o conteúdo. Sem data, se discutiria até a eternidade.
 

ISTOÉ – Como a sra. explica a decisão do governo americano de exigir vistos para passageiros em trânsito nos EUA, como os brasileiros?
Donna Hrinak

Hrinak – O que um país deveria fazer quando tem informações de que
um certo grupo pretende aproveitar a legislação liberal para praticar atos terroristas? Além disso, selecionamos países para exigir vistos analisando o número de pedidos e o número de pessoas destes países encontradas trabalhando ilegalmente nos EUA. Não foi uma escolha aleatória. Quero esclarecer que essa necessidade de vistos para passageiros em trânsito é só para os próximos 60 dias. Depois, vamos revisar a situação. Sei que estamos dificultando a vida de muitas pessoas, das empresas aéreas americanas, da indústria turística americana e das empresas americanas. É uma medida temporária tomada por causa das ameaças.
 

ISTOÉ – Os argentinos, na época do presidente Carlos Menem, não precisavam de vistos para os EUA.
Donna Hrinak

Mas agora precisam. Antes, os argentinos não estavam ficando ilegalmente nos EUA. São dois critérios. Países que não preenchem os requisitos necessários para a obtenção de vistos e países com número elevado de imigrantes ilegais.

ISTOÉ – A Colômbia, onde a sra. serviu vários anos, vive um dilema. Com a ajuda financeira dos EUA, o governo colombiano tem dado muita ênfase para a repressão à guerrilha e ao narcotráfico, mas os resultados até agora têm sido quase nulos. A sra. crê que a alternativa repressivo-militar seja a saída para esses graves problemas estruturais?
Donna Hrinak

 É uma resposta difícil. A assistência militar dos EUA é apenas um elemento em nossa ajuda à Colômbia. Os grupos guerrilheiros não
têm mais ideologia, são narcotraficantes, comerciantes. Acho que tem que haver um incentivo às negociações, mas não da forma como tentou o ex-presidente Andrés Pastrana, sem uma forte presença militar. O
que o atual presidente, Alvaro Uribe, está fazendo, ao ampliar as ações militares, é mostrar que os grupos guerrilheiros não farão progressos pela luta armada. Na verdade, ele está dando um incentivo à retomada de negociações sérias. A situação na Colômbia é extremamente complicada. E há 40 anos. Não há uma bala de prata com uma
solução mágica. Só com negociações sérias.
 

ISTOÉ – A sra. já foi embaixadora na Venezuela. Como avalia a crise nos últimos dois anos? Houve uma tentativa de golpe e os EUA, na visão do Brasil e de muitos países da América Latina, tiveram uma posição ambígua sobre a deposição temporária do presidente Hugo Chávez. Agora, depois da greve geral, houve uma confluência entre os EUA e outros países como o Brasil na busca de uma saída e do diálogo entre o presidente Chávez e a oposição. Como a sra. vê a participação brasileira na crise?
Donna Hrinak

O Brasil está aplicando na Venezuela uma política exterior mais assertiva, que começou com o presidente Fernando Henrique Cardoso e continua com o presidente Lula. George Kennan (diplomata americano, teórico da guerra fria) uma vez disse que existem no mundo cinco “países-monstros” – Rússia, China, Índia, Brasil e EUA. Por muito tempo o Brasil não queria aceitar as responsabilidades que acompanham um “país-monstro”. Nos últimos anos, no entanto, tem procurado desempenhar um papel mais forte, sobretudo na América do Sul. As reuniões do presidente Lula com os demais presidentes latino-americanos, a participação do BNDES em projetos de desenvolvimento nos países vizinhos, o papel de coordenador do Grupo de Amigos da Venezuela, tudo reflete essa política exterior muito positiva.

ISTOÉ – A agenda oficial do governo Bush para a América Latina está muito ligada à questão de Cuba, ou melhor, ao lobby anticastrista de Miami. Vários assessores do governo são ligados aos cubanos de Miami, como Otto Reich, cubano naturalizado. Não é uma visão estreita? .
Donna Hrinak

 O novo subsecretário para a América Latina, Roger Noriega, é de origem mexicana. Seus avós foram imigrantes ilegais. Eu tenho
29 anos de carreira, quase toda na América Latina, e nunca entendi por que os países latino-americanos não defendem os direitos humanos, os direitos democráticos do povo cubano. Se qualquer outro país tivesse agido como Cuba, imagine a repercussão. Nunca entendi esse apoio a Cuba por parte dos países do continente. Uma coisa é a política dos EUA com os cubanos de Miami. Outra é essa espécie de liberdade para violar direitos dada a Cuba


ISTOÉ – Mas a China tem um longo histórico de violação dos direitos humanos, talvez maior do que o regime castrista, e os EUA não parecem ser tão incisivos quanto são contra Cuba, já que têm com Pequim um acordo de Nação Comercialmente mais Favorecida…
Donna Hrinak

Pensei que estivéssemos falando de Cuba… Nós também falamos contra o desrespeito aos direitos humanos na China. Temos apoiado resoluções, condenamos ações chinesas. Aqui no nosso hemisfério, esperamos que a integração leve a um maior respeito
aos direitos humanos.
 

ISTOÉ – A concorrência para a compra de novos jatos para a FAB foi retomada, mas o F-16 americano está sendo descartado, por causa da falta de transferência de tecnologia e da negativa dos EUA em fornecer os mísseis inteligentes de última geração. O que os EUA têm a oferecer nesta retomada da concorrência?
Donna Hrinak

Quem participa da concorrência é uma empresa privada dos EUA. Quanto ao míssil, a decisão cabe ao governo. E a oferta inclui o míssil Aim-120 Amraam.


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