O Brasil tem mais de uma dezena de hospitais do câncer. Mas um deles, o Hospital do Câncer A.C.Camargo, em São Paulo, chegou ao topo na lista dos centros mais competentes para tratamento de tumores e tornou-se referência no cenário científico. Junto com o Instituto Ludwig, que funciona no mesmo prédio, a instituição faz pesquisa e integra o esforço mundial para decifrar o código genético humano. “As pesquisas dessas instituições são reconhecidas mundialmente”, diz Gilberto Schwartsmann, professor de oncologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Entre a população, porém, a instituição, que está completando 50 anos de existência, é conhecida simplesmente como Hospital do Câncer. Dito assim, parece ser o único. “A vantagem é que qualquer taxista da cidade sabe onde fica”, explica Ricardo Brentani, diretor-presidente do complexo. No hospital, são atendidas diariamente cerca de dez mil pessoas, vindas de todo o País. Por ano, são realizadas seis mil cirurgias e registradas 200 mil consultas.

A grande pergunta é como um hospital filantrópico, que em 2002
atendeu 68% da clientela pelo SUS, tornou-se referência de atendimento. A instituição, criada em 1953 por um casal de idealistas – o oncologista Antônio Prudente e a esposa Carmen, ex-jornalista dos Diários Associados –, apresenta índices de sucesso no tratamento que se equiparam aos obtidos pelos melhores hospitais do mundo. “Curamos 67% dos pacientes adultos e entre 70% e 75% das crianças”, afirma o pneumologista e diretor clínico Daniel Deheinzelin, 42 anos. Como ele, a maior parte da equipe não passa dos 50 anos. Luiz Fernando Lima Reis, por exemplo, cientista responsável pelo ensino de pós-graduação do Instituto
Ludwig, tem 44 anos.

A resposta para a eficiência do hospital está na soma de situações peculiares. Uma delas é o modelo de gestão, que já está sendo
adotado por outras instituições. “Aqui não temos carteira de trabalho, concurso de seleção nem salário fixo. Contratamos as empresas de médicos selecionadas pelo diretor clínico para prestar serviços ao
hospital e pagamos de acordo com a produtividade”, descreve Brentani. Isso faz com que até os médicos com cargo de direção continuem atendendo. É o caso de Deheinzelin, que nas segundas e terças-feiras recebe pacientes no ambulatório de pulmão. “Se não trabalhar como médico, eu não recebo”, diz.

A firme disposição de evitar burocracia também faz parte da rotina do hospital e evita que as boas idéias empoeirem nas gavetas. Os cientistas não escondem um certo prazer quando descrevem a flexibilidade que possuem para tocar seus projetos de pesquisa. “Não temos de passar por dezenas de comissões para viabilizar um estudo. Médicos e cientistas se encontram pelos corredores, conversam sobre o que querem fazer e depois cumprem rotinas simples para colocar a idéia em prática”, diz Fernando Soares, chefe da Anatomia Patológica, área responsável pela análise de tecidos para identificar se há câncer e o estágio da doença. Sua mais recente empreitada é a seleção de centenas de amostras de tumores de mama para comparar a reação das células aos tratamentos existentes. Elas foram armazenadas após cada cirurgia no banco de tumores do hospital. A pesquisa se tornou viável graças a um equipamento adquirido há um ano pelo hospital, o microarray, capaz de enfileirar com precisão milimétrica cerca de 500 amostras de tecido diferenciadas. “Coloco tudo em uma mesma lâmina”, explica o técnico químico Carlinhos Nascimento, que há 15 anos foi admitido no hospital para o cargo de contínuo.

Outra das preocupações do hospital é corrigir falhas no atendimento. “Investimos no treinamento de novos profissionais e em algumas rotinas”, explica Brentani. Há oito anos, por exemplo, criou-se um procedimento padrão para diminuir os riscos das cirurgias. “Antes da operação, o paciente é visto por um clínico geral, que avaliará se ele tem diabete, colesterol elevado ou outros problemas que podem complicar mais o pós-operatório do que a própria cirurgia do câncer”, explica Deheinzelin. Outra medida para melhorar resultados foi a instalação de uma sala para fazer a análise de amostras de tecidos que acabaram de ser retirados, com o paciente ainda na mesa de cirurgia. O resultado da avaliação inicial sai em no máximo meia hora. Dependendo do veredicto, a equipe libera o doente ou aumenta as margens de segurança da operação, retirando mais tecidos até ter certeza de que as células malignas foram totalmente extirpadas. No hospital, cerca de 90% das operações solicitam esse tipo de confirmação. Uma vez por semana, Tiago Leitão, 27 anos, dá plantão nessa sala. Ele é um dos 75 residentes, médicos formados que optaram por passar mais três anos no hospital para conquistar o título de especialista. Em geral, trabalham mais de 12 horas e ganham entre R$ 1 mil e R$ 2 mil. “Estou investindo na minha formação”, diz.

Além de treinar os médicos, o hospital angaria recursos para ampliar instalações e tecnologia. Na semana passada, inaugurou o centro cirúrgico, com dez salas. A modernização promete desafogar um pouco a fila de espera e aumentar de 500 para 600 o número de cirurgias mensais. A Unidade de Terapia Intensiva também ganhou mais lugares. De 11 vagas, o número de leitos saltou para 23. Uma parte dessa reforma foi custeada pelo dinheiro arrecadado em campanhas. Uma delas, protagonizada por Pelé, trouxe R$ 1,2 milhão, investidos também na compra de equipamentos moderníssimos. Entre eles, está um aparelho de radioterapia que tem a capacidade de modelar os feixes de radiação no formato exato do tumor. Isso diminui a radiação nos tecidos vizinhos
e saudáveis, permitindo aplicar doses maiores de radiação.

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A receita de sucesso da instituição é também resultado de uma premissa adotada desde sua inauguração: manter um olho no presente, outro no futuro e aproveitar as oportunidades. O hospital combina uma das maiores experiências da América Latina em tratamento de pacientes
com pesquisas feitas no Instituto Ludwig, entidade que abriga 84 pós-graduandos. A paulista Daniela Ierardi e o mineiro Fabrício Costa fazem parte desse time que trabalha para a ciência avançar. Eles estudam o papel de um gene no câncer de mama e de cérebro. Ela faz mestrado,
ele doutorado. Um dos pioneiros do Ludwig, o patologista Humberto Torloni aposta nesses garotos. “Faz-se ciência de qualidade no Brasil
e há bons pesquisadores”, diz. Na década de 80, ele foi uma das peças-chave para a vinda do instituto para o hospital. “O milionário americano Daniel Ludwig queria montar uma filial do seu centro de pesquisas no Brasil e não sabia onde. Mostrei as melhores opções”, conta Torloni,
um dos primeiros médicos da instituição.

O hospital e o instituto se preparam para os desafios do futuro. Suas metas estão refletidas, por exemplo, no simpósio internacional que reuniu na semana passada, em São Paulo, alguns dos maiores especialistas mundiais na pesquisa do câncer. Dois deles, Wadih Arap e Renata Pasqualini, do MD Anderson, dos Estados Unidos, fizeram pós-graduação no Ludwig. “O simpósio é a cara do que o hospital acredita. Vamos discutir como a pesquisa se aplica na rotina clínica”, define o cientista Lima Reis, organizador do evento. “O desafio é saber como usar o que descobrimos com a ciência. O hospital e o Ludwig, pelo acervo e condições de trabalho que reúnem, são os lugares ideais para fazer isso”, diz Brentani. É assim que ele pretende continuar cumprindo a promessa feita a Carmen Prudente: manter o seu hospital no topo.

 

Infância bem cuidada

Sara Ferreira, quatro anos, tirou um tumor benigno e faz consultas periódicas. Rayssa Lorraine acabou de chegar. Tem 14 anos e está em tratamento da leucemia há 85 dias. O tratamento levará pelo menos dois anos. “O atendimento é pelo SUS e é excelente”, diz a mãe, Eliana Teles, de São Paulo. Um dos médicos que as atendem é uma das maiores autoridades em câncer infantil do País, o pediatra Alois Bianchi, há 39 anos no Hospital do Câncer. “Aprendemos muito
e a medicina evoluiu. Por isso, as chances de cura são muito maiores. Poderiam ser ainda melhores, mas isso não ocorre porque em muitos casos o diagnóstico ainda é tardio”, lamenta o médico. A pediatria do hospital tem alguns pacientes com mais de 30 anos. Como se explica? “Fazemos o acompanhamento dos pacientes curados para conhecer
os efeitos do tratamento a longo prazo”, afirma Bianchi.

 

Voluntaria do moderno

Dez horas de uma terça-feira no Centro de Convivência do Hospital do Câncer. Um grupo de voluntárias do Hospital do Câncer assiste com atenção à palestra do pediatra oncológico Luiz Fernando Lopes, coordenador de um grupo único no País, que faz
o acompanhamento de crianças curadas de câncer há pelo
menos oito anos. Uma das coordenadoras do voluntariado, Marília Casseb, diz que a reunião é fundamental para que se conheçam as necessidades do grupo
antes de sair a campo angariando recursos para tornar sustentável mais esse trabalho do Hospital do Câncer. A cena mostra a importância estratégica do voluntariado no hospital. São cerca de
370 pessoas dispostas a arregaçar as mangas para qualquer tarefa – desde costurar lençóis, como faz uma vez por semana um grupo de senhoras de origem japonesa, até captar recursos com grandes empresas e com o governo. “A condição básica para participar é
ter compromisso”, explica Marília. No ano passado, o voluntariado angariou cerca de R$ 4 milhões em recursos.


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