O rastro não era muito visível. Uma pata? Daquela dimensão? Teria que ser um bicho do tamanho do homem. Coçou a cabeça preocupado. Fora acampar na Ilha Deserta e desde o início sentira a presença “ausente” de outras pessoas por ali. Quem seria?

Naquela manhã notou que dois coqueiros na praia, na noite anterior repletos de cocos, estavam agora sem as frutas. Mas quem, a não ser um fotógrafo louco como ele, se aventuraria a entrar naquelas terras desertas? Índios? A hipótese lhe pareceu absurda. Não se consegue mais ser índio em paz hoje em dia, pensou. Logo aparece um Sting ou um Cameron para acabar com a tranquilidade.

Colou o ouvido no chão, como selvagens e cientistas faziam nos filmes, mas não descobriu nada. Analisou mais cuidadosamente a pegada: bem que poderia ser de uma índia-seus-cabelos-negros-como-a-noite-que-não-tem-luar, sonhou. À noite, depois de fotografar minhocas, sapos, cobras e lagartos e fumar um baseado, acalentou seu sonho, enquanto olhava as estrelas e fumava outro baseado, como se fosse um Gauguin na ilha de Papeete. Foi no terceiro dia que a viu. Era uma jovem índia, com as partes pudicas cobertas por uma folha de parreira. Na cabeça carregava um pote de cerâmica. Seguiu-a silencioso pela trilha escondida na mata até chegar numa palhoça, onde um velho de tanga, de barba rala e desgrenhada movimentava-se como se fosse um jovem caçador.

Se Ulysses Guimarães não estivesse supostamente morto, diria tratar-se do próprio. A índia cantarolava “Coração de Estudante”, de Milton Nascimento, enquanto amassava mandiocas. O velho destrinchava um porco com bastante habilidade.

Quando as fotos foram publicadas numa revista semanal, a notícia caiu como uma bomba. Descobriu-se afinal que se tratava de fato de Ulysses Guimarães, cuja morte foi reconhecida em 1993, um ano depois do acidente de helicóptero nas águas tropicais da Ilha Deserta. Por que não voltara à civilização? Como sobrevivia na ilha? Sabia que MDB e Arena não existiam mais? Sabia que Lula fora presidente? E Dilma? Que FHC continuava vivo e pintava os cabelos de cinza para combinar com seus ternos? O que achava da corrupção no Congresso, nos hospitais e em cada buraco do País?

Agora aos 94 anos e em plena forma, Ulysses, que nos anos de vida pública adotara como divisa o universo de Cervantes (construir uma muralha entre meus apetites e minha honestidade, etc. e tal), naquele cenário sua divisa era o universo de Robin Crusoé: viver o dia, não matar animais a não ser para alimentação e não roubar banana dos macacos. Até que sua história fosse descoberta, a vida na selva era um paraíso: do acidente, nada se lembrava, tendo a impressão de que nascera ali naquela ilha, no dia em que acordara em suas areias um tanto estropiado. Alguns dias depois, quando, quase morto, procurava algo para comer, encontrou Potira. Única sobrevivente de uma tribo massacrada durante as filmagens de “Avatar”. Agora, aos 18 anos de idade, a moça o chama de txutxuquinho, meu Ramsés, enquanto ele a mima com dengos similares.

Com o vazamento da notícia, a imprensa não saía da ilha. Ulysses não podia mais fazer a sua caminhada matinal com a índia para caçar porco selvagem, sem que logo aparecessem paparazzi. E não havia sequer um dia em que as fotos não estivessem nas colunas sociais com legendas do tipo: Ulysses e Potira passeiam antes da caçada. Ulysses e Potira curtem as águas cristalinas. Potira retira piolhos do amado.

Cientistas escarafuncham a ilha para tentar descobrir a razão da longevidade do político que, segundo seus antigos amigos, está mais saudável e ativo do que antes das Diretas Já. Os políticos não saíam mais da ilha: queriam a todo custo convencê-lo a voltar. Fizeram com suas visitas incômodas com que sua memória fosse recuperada – agora lembrava-se inclusive da Fafá de Belém e seus peitos enormes. E quanto mais se lembrava, mais a atual realidade lhe parecia absurda. Filiados da ex-Arena agora eram líderes do PMDB? O PT não era mais esquerda? O PSDB era direita e contra o aborto? Mas os políticos são terríveis: prometeram-lhe honrarias. Presidência dos Correios ou da Petrobras. Jantares com Eike Batista. Dinheiro na cueca ou em conta na Suíça, iPhone 4. E Ulysses? Ulysses ouvia todos os apelos com seu famoso estoicismo. E depois nem se dava ao trabalho de responder. A vida na selva era menos selvagem do que em Brasília. Ali, seu único trabalho sujo era matar porcos de verdade. E para comer.