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A VISITA DOS AMIGOS
Em dezembro de 2010, no hospital, Alencar recebeu o
carinho de Lula e da então presidente eleita, Dilma Rousseff

Na tarde do dia 28 de março de 2011, o ex-vice-presidente José Alencar entrou pela última vez pela porta do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Fazia um trajeto que havia se tornado rotina nos últimos 13 anos, período no qual travou uma batalha contra o câncer que comoveu o País. Durante o tratamento, o ex-vice-presidente passou por 17 cirurgias e tomou decisões corajosas, como usar remédios ainda em fase de testes. A naturalidade e o otimismo demonstrados por ele a cada momento da sua luta transformaram-no em um exemplo para quem enfrenta a mesma doença.

Sua guerra particular começou em 1997. Aos 66 anos, ele foi convencido a fazer um check-up. Os testes, realizados em Belo Horizonte, revelaram um tumor no rim direito. Dois dias depois, Alencar já fazia exames pré-operatórios no Sírio-Libanês. Na ocasião, pediu aos médicos que fizessem também uma endoscopia – exame para analisar o interior do estômago. Queria matar a curiosidade. Além de ter azia de vez em quando, ele soubera, batendo papo com uma médica durante a ressonância abdominal, que o interior do estômago só poderia ser estudado por endoscopia. Os médicos concordaram – e foi dessa maneira que encontram o segundo tumor.

Os tumores foram tirados em uma mesma operação. Os responsáveis pelo procedimento foram o urologista Miguel Srougi e o gastroenterologista Raul Cutait, dois grandes nomes da medicina brasileira. No primeiro trimestre de 2002, porém, o check-up semestral – então, uma rotina na sua vida – revelou um tumor na próstata. Retirou o câncer por meio de uma cirurgia e não precisou de radioterapia nem de quimioterapia, dois tratamentos-padrão indicados contra a doença.

Tirando de letra outros problemas de saúde, como uma operação para extrair a vesícula biliar e a colocação de stents para desobstruir uma artéria do coração, Alencar acreditava que a batalha contra o câncer estava encerrada. Foi durante sua campanha à reeleição, em 2006, que o ex-vice-presidente precisou reunir forças para enfrentar de novo o inimigo. Desta vez, porém, a peleja seria mais difícil por causa do tipo de tumor, identificado como sarcoma. Para a medicina, câncer é o nome dado a um conjunto de mais de 100 doenças que têm em comum o crescimento desordenado de células que invadem tecidos e órgãos e podem atingir outras regiões do corpo (a metástase). “Na próstata, no rim e estômago, Alencar teve carcinomas, tumores que surgem em tecidos como a pele e as mucosas”, explica o cirurgião oncológico Ademar Lopes, que operou Alencar em 2009. “Quando o tumor começa em tecidos conjuntivos, como os ossos e a cartilagem, é chamado de sarcoma”, diz.

A notícia do sarcoma preocupou os médicos. Tratava-se de um tumor mais raro, que atinge 20 em cada um milhão de pessoas no mundo e se apresenta em mais de 50 diferentes formas. O sarcoma de Alencar surgiu no retroperitônio, uma área do abdome que fica atrás do intestino grosso, o que ocorre apenas com 10% a 12% dos atingidos. O principal tratamento é a cirurgia, ainda que esse tumor seja recorrente, outra das suas características. “Você tira e ele retorna”, explicou a certa altura o próprio ex-vice-presidente.

Quando o sarcoma é diagnosticado no início, as possibilidades de cura ficam entre 90% e 95%. Isso quer dizer que as chances caem à medida que o tumor aumenta. O que estava escondido no abdome de Alencar tinha o tamanho de uma bola de pingue-pongue, entre quatro e cinco centímetros. Foi tirado em 18 de julho, no Sírio-Libanês, por um corte que tinha 20 centímetros de extensão. Mesmo assim, Alencar surpreendeu. Dez dias depois, voltou à campanha. Começava aí, porém, uma fase em que cirurgias e internações se tornariam cada vez mais frequentes.

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“É meu interesse participar de tratamentos experimentais”
José Alencar

Reeleito vice de Lula no segundo turno, ele retomou sua batalha contra o câncer. Os exames atestaram que havia outro tumor no retroperitônio. Alencar seguiu para os EUA para se submeter à cirurgia de retirada deste câncer, feita no Memorial Sloan-Kettering Cancer Center. Alencar estava acompanhado de seu médico, o oncologista Paulo Hoff, que por 11 anos trabalhara no centro médico americano, uma das referências mundiais em tratamento contra a doença. A operação durou seis horas e meia. Antes de deixar a sala de cirurgia, ele foi submetido à radioterapia intraoperatória, feita com o corte ainda aberto. Fez também, depois, seis sessões de radiofrequência, de 12 minutos cada uma, na região abdominal. Os médicos decidiram ainda que era hora de começar a quimioterapia. Exames realizados nesse período revelaram que Alencar era portador da síndrome de Li-Fraumeni, uma mutação genética que eleva em até 90% a chance de o indivíduo apresentar vários tumores ao longo da vida.

Após várias sessões de químio, o oncologista Paulo Hoff indicou um novo tratamento para conseguir alguma vantagem sobre os tumores recorrentes. Em 2008, Alencar começou a tomar uma nova droga, o Yondelis, fabricado na Espanha a partir de uma molécula descoberta em um molusco. Ao longo de 2007, porém, foi operado novamente para tirar mais três tumores do retroperitônio.

No começo de 2009, o tratamento foi suspenso e Alencar precisou ser operado mais uma vez. Foi a maior de todas as suas cirurgias. No dia da intervenção, 22 de janeiro, os médicos estavam calados, apreensivos. Acabaram animados pelo próprio paciente: “Vamos lá, gente, temos muita coisa para fazer”, conclamou Alencar no momento em que chegava à sala de cirurgia. Ele ficou 18 horas na mesa de operação para retirar 11 tumores, dos quais um com 12 centímetros. Perdeu cerca de 15 centímetros de intestino grosso, parte de um músculo, dois terços do ureter e os vasos ilíacos esquerdos. Depois, em mais um procedimento avançado, sua cavidade abdominal foi lavada por uma hora e meia com uma solução de quimioterápicos a 42ºC, para eliminar tumores impossíveis de ver a olho nu. O procedimento foi realizado por Ademar Lopes. “Fui chamado por causa da extensão da cirurgia”, disse. Lá estavam também o oncologista Hoff e o cardiologista Roberto Kalil Filho.

Em maio, novos tumores foram encontrados. Desta vez, os médicos sugeriram um tratamento experimental. Na companhia de Hoff, a quem apelidou de “meu médico principal” na luta contra o câncer, foi novamente aos EUA, no Hospital M.D. Anderson, outro serviço de excelência oncológica. Lá, recebeu uma medicação em fase de testes, chamada R7112. A droga, até então ministrada a apenas 30 voluntários, interfere na multiplicação celular. “Minha participação, ainda que possa redundar em benefícios para todos, é de meu interesse. Afinal de contas, isso pode ser a minha cura”, acreditava.

Os efeitos não foram tão bons como se esperava. No final de julho, o tratamento experimental foi suspenso porque os tumores tinham voltado, igualmente numerosos. Além disso, Alencar estava fraco e precisava se recuperar. No começo do mês, fora operado por causa de uma obstrução intestinal provocada por novos nódulos tumorais e recebeu colostomia – fechamento do reto e colocação de uma bolsa plástica para coleta de resíduos. Em setembro, voltou ao hospital com diagnóstico de pancitopenia – uma condição em que os níveis de hemoglobina, leucócitos e plaquetas estão baixos.

A batalha de Alencar continuou em 2010. Em julho, ele teve uma crise de hipertensão e foi submetido a um cateterismo. Em setembro, voltou ao hospital por culpa de um edema agudo de pulmão. Em novembro, retirou um segmento do intestino obstruído por tumores. Foi sua 16a cirurgia. Sofreu também um infarto. Em 22 de dezembro, foi de novo internado por causa de uma hemorragia digestiva grave, que o fez perder dois litros de sangue. Recebeu transfusões de sangue e passou por nova cirurgia, a 17a, mas a operação não conseguiu estancar o sangramento e foi interrompida. Mais uma vez, o País se assustou e depois respirou aliviado quando o ex-vice-presidente melhorou após receber antibióticos, plasma e plaquetas. Consciente e falante, esperava ir à posse no dia 1º de janeiro, em Brasília. Na virada do ano, foi proibido pelos médicos de ir à cerimônia. Contentou-se em saborear, no hospital, um naco de leitão pururuca, acompanhado da família. Depois de algumas idas e vindas ao hospital nos meses seguintes, decidiu parar com a quimioterapia semanas antes de morrer. Havia sido avisado que o tratamento não mais teria sucesso.

Na sua luta contra a doença, a coragem e o otimismo de Alencar surpreenderam até médicos como Paulo Hoff, um dos mais experientes especialistas em câncer do País. “Ele sempre teve uma grande vontade de viver e uma resistência maior do que a da média das pessoas. Ficamos amigos e posso dizer que aprendi muito com ele”, disse Hoff.

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Os políticos e a saúde
A exposição pública de cada lance da história de José Alencar contra a doença é um fenômeno recente. Historicamente, os políticos nunca gostaram de ver suas enfermidades expostas. O argumento para a discrição era o de que mostrar-se doente era mostrar-se frágil. Exatamente o que um político não quer. Por isso, a maioria escondia quanto fosse possível sua condição de saúde. Foi assim com o ex-ministro Petrônio Portella, cotado para suceder o então presidente João Baptista Figueiredo, que, por isso mesmo, escondeu problemas cardíacos. A mesma atitude tomaram o ex-ministro da Fazenda Dilson Funaro, vítima de câncer no sistema linfático quando estava à frente da pasta no governo de José Sarney, o ex-presidente do PSDB Sérgio Motta, que teve infecção pulmonar, e o ex-governador de São Paulo Mário Covas. Portador de um tumor de bexiga, Covas manteve o segredo durante sua campanha de reeleição e só o revelou quando já era impossível disfarçá-lo.
O caso mais emblemático foi o do então presidente eleito Tancredo Neves. Eleito pelo Colégio Eleitoral em 1985, tinha sobre ele a expectativa da redemocratização do País, depois de 20 anos de ditadura. Porém, às vésperas da posse, em 14 de março de 1985, foi internado no Hospital Geral de Brasília com dores abdominais. Soube-se, mais tarde, que as dores já eram intensas semanas antes, mas Tancredo não deixou que soubessem. O que ocorreu a seguir foi uma enorme confusão. Com Tancredo já internado no Instituto do Coração (SP), o Brasil ouvia, atônito, uma enxurrada de informações desencontradas e inverídicas sobre seu real estado. É conhecida a história da última foto de Tancredo. Ele aparece sentado entre os médicos e ao lado da mulher, Risoleta. Está abatidíssimo. Mas a foto era a derradeira tentativa de fazer o País acreditar que ele estava bem. Tancredo morreu menos de um mês depois de ter posado para a foto, vítima de infecção generalizada. Alencar e a presidente Dilma Rousseff ajudaram a mudar esse comportamento. Pouco antes de ser apresentada como a candidata do ex-presidente Lula, Dilma teve diagnosticado um linfoma não-Hodgkin (câncer que atinge o sistema linfático).
Não escondeu a doença da nação. E hoje, sabe-se, manifesta um carinho especial pelos portadores da enfermidade.