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TESTE
Moradora do entorno da usina passa por inspeção radioativa em Ibaraki

Às 8h55 do dia 6 de agosto de 1945 um imenso clarão cortou o céu de Hiroshima. Parecia um naco de sol, iluminando todas as coisas com um branco intenso. Ninguém ouviu estrondos até que as paredes começaram a voar e nuvens de poeira envolveram a manhã numa espécie de penumbra. Horas depois, o doutor Masakazu Fujii se deparava com uma horda de feridos zanzando pelas ruas da cidade. Nus, com os corpos queimados, eles caminhavam de cabeça baixa, em silêncio, absolutamente inexpressivos. Como japonês, o médico se atormentava pela vergonha de ter sido poupado daquela desgraça. Perto dali, num bambual à beira do rio, o padre Kleinsorge, um jesuíta alemão, se surpreendia com o silêncio de centenas de feridos que sofriam juntos: “Ninguém chorava e muito menos gritava de dor. Ninguém se queixava. Ninguém agonizava ruidosamente. Nem as crianças choravam. Pouca gente falava.”

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RISCO
Equipes de resgate podem ser contaminadas

Quase sete décadas depois destes episódios, descritos pelo jornalista americano John Hersey numa monumental reportagem, o mesmo pudor e a mesma recatada resignação de um povo com sua dor podiam ser constatados em vilarejos e cidades de todo o nordeste do Japão, devastado por um terremoto de nove graus na escala Richter, seguido por tsunami e gravíssima ameaça nuclear. A emoção contida também se estampava nos rostos de milhares de japoneses colocados em fila para se submeterem à inspeção radioativa. Eles se encontravam no entorno da usina Fukushima I quando o terremoto provocou pane no complexo nuclear. Dos seis reatores da usina, quatro passaram por uma sucessão de explosões e incêndios, sinalizando a possibilidade de uma hecatombe atômica. “Por favor, não saiam, fiquem em casa, fechem as janelas e vedem suas casas”, apelou o porta-voz do governo japonês, Yukio Edano, dirigindo-se aos 200 mil moradores das imediações de Fukushima I. A quase dez mil quilômetros de distância, em Bruxelas, na Bélgica, o comissário da União Europeia para energia, Gunther Oettinger, classificou como “apocalíptica” a crise nuclear japonesa. “A situação está fora de controle”, afirmou Oettinger, enquanto colunas de vapor saíam sem parar do complexo. Em Viena, na Áustria, Yukiya Amano, o veterano diplomata japonês que dirige a agência da ONU para energia nuclear, negou que houvesse tal descontrole antes de embarcar para Fukushima. Seu prognóstico, porém, não foi nada confortador: “É difícil prever se a situação vai melhorar ou piorar. Nós não sabemos. Há indícios para os dois lados.”

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Hiroshima
1945 – A cidade em destroços depois que a bomba caiu e um imenso clarão cortou o céu

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Miyagi
2011 – Uma das cidades mais atingidas pelo tsunami, parece cenário de guerra

O espírito com que os japoneses enfrentaram a bomba atômica em 1945 ressurgiu no arquipélago na tarde da quarta-feira 16. A predisposição para a luta seguindo o código de ética pelo qual é melhor morrer do que viver na vergonha reapareceu incorporada no grupo de 50 engenheiros, físicos, técnicos e operários que permaneceu no interior na usina tentando evitar uma catástrofe nuclear. Eles se revezavam no bombeamento de água para resfriar os reatores quando a radiação atingiu níveis insuportáveis para seres humanos. Retirado às pressas, o grupo retornou cinco horas depois.

Na volta, os 50 tinham virado 180, muitos deles voluntários. Usam máscaras e roupas de proteção, mas sabem que a missão à qual se dedicam pode custar-lhes a vida. Dois dias antes, tripulantes de helicópteros americanos que haviam voado a 100 quilômetros de Fukushima foram contaminados pela radiação. Os níveis eram baixos, mas, ainda assim, o governo americano reposicionou toda a tropa que mantém na região. As primeiras tentativas de resfriar os reatores de Fukushima I, jogando água de helicópteros, também haviam sido abortadas por causa da radiação. Não por acaso, os 180 trabalhadores que lutam no interior da usina estão sendo venerados como heróis pelos japoneses. “Eles são como combatentes suicidas numa guerra”, disse o especialista Keiichi Makagawa, do Departamento de Radiologia do Hospital Universitário de Tóquio. A comparação ecoou de forma ainda mais profunda na memória afetiva dos japoneses quando a mensagem da filha de um dos trabalhadores de Fukushima I foi lida em uma emissora de tevê: “Meu pai ainda está trabalhando dentro da usina. Eles estão praticamente sem comida. As condições de trabalho são duras. Ele diz que aceita seu destino como uma pena de morte”, contou a garota.

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Hiroshima
1945 – Civis e soldados aguardam os poucos ônibus que circulam após a catástrofe nuclear
 

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KORYAMA
2011 – Moradores fazem fila para receber água potável na região ameaça pelo perigo atômico

Cinco dias depois do tsunami, com o país sob a crescente ameaça de contaminação, o imperador Akihito apareceu na televisão para um inédito pronunciamento à população. Ele pediu que os japo­neses “dessem as mãos” e mostrassem “compaixão uns com os outros para superar esses tempos difíceis”. O discurso raro e comedido de Akihito remeteu à histórica proclamação de seu pai, o imperador Hiroito. Por exigência dos Estados Unidos, seis dias após o bombardeio a Nagasaki, em 15 de agosto de 1945, Hiroito dignou-se a falar para seu povo pela primeira vez na história. Pelo rádio, o imperador-divindade, que não podia ser tocado e nem sequer olhado de frente por seus súditos, usou um japonês arcaico que poucos conseguiam entender. Arrogante e ambíguo, Hiroito não citou a palavra “rendição”, preferindo um genérico “cessar fogo”, e rogou que o povo “tolerasse o intolerável”. Coube a locutores da rádio esclarecer que o imperador, na verdade, anunciara a derrota do Japão. O discurso de Hiroito desencadeou uma onda sinistra: mais de 500 japoneses cometeram suicídio pela “vergonha” de não terem impedido que o imperador sofresse. Agora os tempos são outros, mesmo para uma sociedade tradicional como a japonesa. Depois da fala de Akihito aumentaram as suspeitas de que o governo esconde a real situação.

Com exceção do inédito pronunciamento do imperador, os principais sinalizadores da gravidade da crise vêm do exterior. Na França, estima-se que uma nuvem radioativa proveniente de Fukushima atingirá os céus da Europa nos próximos dias. Thierry Charles, o diretor do Instituto de Segurança Nuclear da França, não mediu palavras ao expressar seu pessimismo. “É uma situação de alto risco. Uma evaporação completa (da piscina do reator 4 da usina) nos deixaria no mesmo nível de exposição que Chernobyl”, comparou Charles, referindo-se ao acidente de 1986 na antiga república soviética. Nas imediações de Fukushima I, enquanto o Japão ordenou a evacuação de uma área de 20 quilômetros ao redor da usina, os Estados Unidos estabeleceram em 80 quilômetros o diâmetro de segurança para os americanos. “Mesmo que as equipes de emergência japonesas continuem fazendo um trabalho heroico, sabemos que os danos aos reatores nucleares na usina de Fukushima apresentam um risco substancial para as pessoas que estão próximas”, explicou o presidente Barack Obama.

Para aguçar as suspeitas de que o governo japonês esconde informações estratégicas sobre a crise nuclear, veio à tona um documento de 2008, obtido pelo site WikiLeaks. No documento, o embaixador americano Thomas Schieffer relata denúncia feita por um respeitado líder político japonês, o deputado Taro Kono, de que o governo ocultava dados sobre acidentes nucleares no país. Em outro documento, o serviço diplomático americano informava que as medidas de segurança contra terremotos no arquipélago só haviam sido revisadas três vezes nos 35 anos anteriores. Além disso, após o terremoto de 6,8 graus na escala Richter ocorrido em 2007 na usina nuclear de Kashiwazaki-Kariwa, a maior do mundo, o próprio governo japonês reconheceu que a empresa responsável pela usina, a Tokyo Eletric Power Co. (Tepco), havia comunicado de forma lenta e pouco rigorosa os danos causados pelo tremor.

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SOBREVIVENTE
Resgate do terremoto seguido por tsunami que já deixou quase sete mil mortos

Como se não bastasse, a agência japonesa Kyoto divulgou na terça-feira 15 trecho de uma preocupante conversa que o atual primeiro-ministro, Naoto Kan, teve com executivos da Tepco, que também opera a Fukushima I. “A tevê relatou a explosão (em um dos reatores). Mas nada foi informado ao gabinete do primeiro-ministro por uma hora. Que diabos está acontecendo?”, teria perguntado o primeiro-ministro. Ao revelar sua dificuldade em lidar a crise, o primeiro-ministro acabou reforçando a avaliação do comissário da União Europeia de que a situação estaria fora de controle. A possibilidade de um vazamento importante de radioatividade é, no mínimo, aterrorizante. A densidade demográfica no Japão é 20 vezes maior do que a da região de Chernobyl.

Por causa do clima de terror, um intenso êxodo vem marcando o cotidiano japonês. Com medo de uma hecatombe atômica, estrangeiros abandonam em massa o arquipélago. O movimento se reflete inclusive no aeroporto internacional de Guarulhos, em São Paulo, com o desembarque constante de brasileiros antes radicados no Japão. No cenário interno, a debandada é para o sul, o mais longe possível de Fukushima I. A 250 quilômetros da usina, Tóquio, a antes pulsante capital, com 32 milhões de moradores na região metropolitana, está com as ruas desertas.

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ALERTA
A pane no complexo nuclear provocou evacuação de moradores, inspeção
radioativa e êxodo para o sul do país, além de mobilização de tropas e de
especialistas no combate a desastres nucleares

PARTE 2