Califórnia é um Estado de fenômenos impossíveis. Por exemplo: a partir de outubro próximo pode ser empossado no palácio do governo, em Sacramento, pela primeira vez na história, um governador com peitos maiores do que os da primeira-dama. A se acreditar na enxurrada de páginas da imprensa americana dedicada ao assunto ultimamente, o ator, ex-Mister Universo e ex-Mister Olympia Arnold Schwarzenegger será o próximo mandatário estadual. Só mesmo na Califórnia um austríaco patola, que chegou no pedaço sem falar uma única palavra em inglês (e continua com um sotaque horroroso), pode se transformar num campeão de bilheterias, ganhar montanhas e vales de dinheiro, e
ser eleito, aos 55 anos, para o cargo mais alto do executivo local.
O território – ultraliberal, lembram alguns – é domínio do Partido Democrata e Schwarzenegger é republicano de carteirinha. E daí?
O homem, apesar dessas convicções, casou com uma donzela do clã Kennedy, o maior bastião democrata americano. E quem poderia
impedi-lo? Quem vai encarar?

O candidato, se eleito, terá de usar todos seus bíceps, tríceps, oblíquos, trapézio, panturrilhas, supino reto e fossa ilíaca na tarefa hercúlea de levantar o déficit orçamentário local, que já chega a US$ 36 bilhões. Mesmo assim, “Arrrrnold” – como é chamado pelos fãs – parece querer mesmo comprar a briga. A ISTOÉ ele disse, na semana passada: “Estou estudando com muito cuidado a situação. Os políticos parecem ter esgotado seus caminhos. Existem momentos em que alguém de
fora tem de entrar e assumir o controle. Acho que este momento chegou para
a Califórnia.”

Impeachment – A campanha eleitoral deve atrasar ainda mais os tours de promoção de seu último trabalho. Mas será um lapso relativamente curto, visto que a corrida rumo à capital Sacramento deve terminar em outubro, caso tudo dê certo para o herói. Deve também dar tudo errado para o atual ocupante do cargo, o governador democrata Gray Davis, que normalmente ficaria onde está até 2006.

O que acontece atualmente é mais uma fantasia que os californianos, mestres nesta área, transformaram em realidade. Um deputado estadual republicano, Darrell Issa, lançou há seis meses uma campanha para um “recall” (“rechamada” eleitoral, uma espécie de impeachment) do governador. Alega má-fé, fraude e incompetência administrativa. Trata-se de uma manobra legalmente possível e que já foi tentada por 31 vezes em outras épocas, mas com a qual nenhum incumbente foi retirado do posto. Para a jogada dar certo, era preciso que a turma do recall conseguisse 900 mil assinaturas de eleitores do Estado pedindo a efetivação da medida. Vencida essa etapa, acontecerá um plebiscito em setembro, no qual se aprova ou não o recall. Por fim, candidatos vários competem numa nova eleição.

O próprio Issa, que é o único candidato já declarado, não teria nenhuma chance de conseguir o recall, não fosse a extrema impopularidade do atual governador, com apenas 27% de aprovação entre eleitores, e a ajuda de gente barra-pesada. Arnold andou emprestando seus músculos para a campanha, enquanto promovia seu “Terminator 3”. E pegou gosto pela coisa, tanto que Issa é uma espécie de azarão nas apostas. O movimento, financiado a princípio por US$ 500 mil do bolso do deputado, recebeu ajuda bem mais substancial dos cofres republicanos do Estado e de contribuições privadas. No dia 15 de julho, já se tinha conseguido 1,6 milhão de jamegões, o que selava a sorte do governador Gray Davis. Era necessário uma última assinatura: a do juiz que decidirá a questão. Antes mesmo da retirada do governador, a imprensa americana já havia eleito Schwarzenegger governador. Por exemplo, a capa da revista mensal Esquire titulou: “O próximo governador da Califórnia, realmente.” A publicação escalou dois repórteres para perfilar o ator. O primeiro, uma mulher, revelou um bobalhão egocêntrico, que se julga artista plástico por pintar golfinhos em caixas de charuto e projetar relógios que, apesar de caríssimos, não funcionam. Um pretensioso que ousa dar conselhos sobre design para os projetistas da General Motors. Um entrevistado que não fecha a matraca em autopromoção, impedindo qualquer pergunta. No outro segmento, Esquire publica a análise de um repórter, homem, na qual Arnold aparece como estadista. Em reunião do conselho diretor de sua entidade benemerente na filial de Detroit – a National Inner-City Games Foundation –, o astro expõe seus músculos cerebrais, aconselhando sabiamente, pedindo maior empenho, dando soluções para os problemas da juventude desamparada. Exige, por exemplo, que, além dos esportes – que formam a engrenagem-mestra do programa de atividades pós-escola, da fundação dedicada a crianças dos guetos pobres –, também seja incluído o auxílio educacional aos que estão atrasados nas aulas normais. O “Exterminador”, o “Bárbaro Conan” quer que seus funcionários sirvam de tutores para quem tira nota baixa em matemática e contribui, junto com outros doadores e recursos públicos, para dar mais opções a crianças que, do contrário, só têm a rua e seus perigos. “É preciso ter uma visão, uma visão como a que John Kennedy trouxe para os americanos”, diz. Este é um Arnold líder cívico.

Estranho no ninho – Mas qual será o Schwarzenegger que os californianos vão eleger? O clima de campanha política já está a pleno vapor, com vários grupos de interesses pintando o personagem central com as tintas que mais lhes convêm. É o esperado. Afinal, quando falou pela primeira vez em se lançar na aventura política, em 2001, Arnold imediatamente recebeu chumbo grosso dos marketeiros democratas, ligados ao então candidato Gray Davis. Fizeram circular pelas redações histórias de infidelidade conjugal e uso de esteróides pelo campeão dos músculos. Foram até pouco criativos, visto que no documentário Pumping iron, estrelado por Schwarzenegger em 1977, quando era apenas o Mr. Olympia, dono do título de “Corpo mais perfeito do mundo”, o mocinho confessou que havia fumado – e tragado – maconha. Anos depois, em 1983, o machão aparece no Rio, como anfitrião do documentário Carnival in Rio, em que mostra o Carnaval carioca. Rasga a fantasia em meio à mulherada pelada – numa delas tenta embutir uma cenoura entre as nádegas fartas. O filme ainda está à venda nas boas casas do ramo e forneceria vasto material à oposição da chapa do Exterminador.

Nas trincheiras conservadoras também não existe amor incondicional a este homem que optou pelo Partido Republicano ao ouvir um discurso de candidatura de Richard Nixon nos anos 70. “Eu fui criado sob o regime socialista da Áustria. Lá, as decisões eram sempre feitas pelo governo e impostas ao povo. Gostei de ouvir os republicanos pregando a menor participação do governo na vida das pessoas. Deixe que o povo decida o que quer”, diz Arnold. Desde que pisou nos EUA, ele vem apoiando presidentes republicanos, especialmente Ronald Reagan, seu herói, e George Bush, pai. Acontece que estas não são credenciais suficientes para a direita do partido. Schwarzenegger abraça causas que são anátemas da linha-dura: é a favor do direito constitucional ao aborto, do controle de vendas de armas (imagine! um cara que já matou 400 pessoas em seus filmes), e da causa dos imigrantes. Explica-se: 1) Como diretor de uma fundação dedicada à infância desamparada, Arnold sabe muito bem o que a proibição ao aborto iria gerar no país: mais crianças vivendo em condições subumanas. 2) Com os músculos que ele tem – com os quais já nocauteou um camelo no filme Conan –, quem precisa andar armado? 3) Quem nasceu na Áustria, foi ser pedreiro na América e se tornou milionário com ingressos de cinema comprados por minorias étnicas não pode mesmo ser contra os imigrantes. O problema dos reaças californianos é que eles vêm tomando surra dos democratas há anos. Sua maior esperança em exterminar com a máquina eleitoral democrata é o cyborg Arnold.

A Casa Branca, num de seus típicos lances individualistas, quis desencorajar o movimento para o recall do governador Davis. “Os
gurus de Washington queriam que o circo pegasse fogo ainda sob o comando democrata. Desejavam uma revolta popular californiana que fosse enfrentada por Davis, culminando com uma enxurrada de votos
para George W. Bush nas eleições presidenciais de 2004”, disse a
ISTOÉ Monica Getz, a porta-voz do deputado Darrell Issa. Além disso,
a Conselheira de Segurança Nacional, Condoleezza Rice, havia manifestado interesse em concorrer ao cargo nas eleições de 2006 –
ela é de Birmingham, no Alabama, mas fez a Universidade de Stanford,
na Califórnia. “O problema com tudo isso é que o recall vai tornar vago
o posto, e se Arnold não sair candidato esta será uma oportunidade perdida. Tanto para o Partido Republicano, principalmente se forem enfrentar a senadora democrata Dianne Feinstein, uma campeã de
votos, quanto para Arnold, que não sabe o que pode acontecer no futuro”, diz o consultor de comunicações do Partido Republicano na Califórnia, Rob Stutzman.

Emenda a calhar – O cenário parece montado de modo espetacular para a premier de Schwarzenneger em Sacramento. E quem sabe, no futuro, a Presidência do país também lhe caia de bandeja. Atualmente, a Constituição americana só permite a candidatura ao Executivo àqueles americanos nascidos no país. Mas ISTOÉ descobriu que há uma semana, o senador Orrin Hatch, republicano de Utah, está trabalhando na moita para apresentar uma emenda constitucional que permitiria a candidatura à Presidência aos que obtiveram a cidadania americana há pelo menos 20 anos. Arnold Schwarzenegger se naturalizou em 1983. Outra coincidência: Orrin Hatch, apesar de conservador ferrenho, é o melhor amigo do ultraliberal Ted Kennedy, irmão de Eunice Kennedy Shriver. Esta vem a ser mãe de Maria Shriver, a esposa de Arnold. Ou seja: está tudo em família. A jornalista Maria Shriver, sobrinha de John e Bob, pode ganhar novamente a Casa Branca para a família, usando como arrombador da porta o republicano Arnold.

Impossível? Era o que diziam quando um ator bem menos carismático – seu filme mais lembrado é Bedtime for Bonzo, em que a estrela principal é um macaco – também rumou à Presidência. Ronald Reagan, a quem Arnold está sendo comparado, deixou o cinema em 1964 para chegar ao governo da Califórnia em 1966 e, após duas tentativas, ganhar a indicação de seu partido à Presidência e só sair do Salão Oval depois de dois mandatos. Schwarzenegger, pondere-se, pelo menos fez filmes mais divertidos. E tem peitorais, bíceps e nádegas muito melhor esculpidos. O austríaco só tem um músculo que não funciona direito. Não é o que se poderia pensar: aquilo não é músculo. Arnold é cardíaco.