A nomeação, no domingo 13, do Conselho de Governo iraquiano pelas forças de ocupação dos Estados Unidos seria o ato mais democrático depois da queda do ditador Saddam Hussein. Tanto é que no discurso de abertura o clérigo xiita Mohamed Bahr al-Ulum chegou a declarar que “o Iraque está voltando ao lugar que lhe corresponde: em paz consigo mesmo”.

O Conselho não poderia ser mais representativo da pluralista população iraquiana: é composto por 13 árabes muçulmanos xiitas, cinco árabes muçulmanos sunitas, cinco curdos, um cristão assírio e um turcomano sunita. No Conselho estão presentes três mulheres, e 16 de seus integrantes viviam no exílio. O organismo – cujas decisões poderão ser vetadas pelos EUA e Reino Unido – foi criado para, entre outras funções, estabelecer uma nova Constituição para o Iraque. Seria a flor da democracia nascendo na aridez do deserto iraquiano. Não fosse um pequeno detalhe: esse conselho é mais uma das inúmeras farsas da operação americana no Iraque.

A realidade é bem outra e começa a ser ampliada pelas lentes de quem acompanha os soldados em combate. O general John Abizaid, chefe do Comando Central Americano, afirmou que suas tropas estão enfrentando uma “guerra de guerrilha do tipo clássico” e que “foram pegas desprevenidas pelo aumento de ataques após o desmantelamento das forças de segurança iraquianas”. Ou seja, estão muito longe do paraíso, ao contrário do que levava a supor o anúncio feito pelo presidente George W. Bush no dia 1º de maio, declarando o fim dos grandes combates. Na quarta-feira 16, quando o número de soldados americanos mortos atingiu 147, foram veiculados no programa Good Morning America, da rede americana ABC, depoimentos chocantes de tropas americanas frustradas, cansadas, que não vêem a hora de tudo acabar para voltar para casa. Ao saberem que essa hora deverá se prolongar por tempo indeterminado, uma vez que só sairão de lá quando for eleito um novo governo – o que ninguém sabe quando irá acontecer –, eles desabafaram. “Tenho minha lista dos mais procurados. Os ases são Paul Bremer (o administrador americano no Iraque), Donald Rumsfeld, George W. Bush e Paul Wolfowitz”, disse um sargento na televisão. “Eu pediria a ele (Rumsfeld) que renunciasse”, declarou outro militar.

O secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, foi mais uma vez desmascarado porque há cerca de um mês pregava que a resistência contra os americanos no Iraque estava restrita a “pequenos bolsões”. Agora, essa resistência cresce de maneira assombrosa. Na quarta-feira 16, um míssil terra-ar foi disparado contra um avião americano Hércules C-130 quando aterrissava no aeroporto de Bagdá – o mesmo que, em abril, os americanos diziam ter controlado. A arma errou o alvo e ninguém saiu ferido, mas deixou um aviso claro: que os seguidores de Saddam Hussein estão sofisticando suas ações. No início de maio, quando a guerra parecia ter acabado, começaram com ataques de armas leves e metralhadoras; hoje, utilizam bombas e mísseis. Cerca de 80% dos ataques aconteceram nas regiões dos muçulmanos sunitas em Bagdá e no triângulo sunita no oeste do país. Remanescentes da Guarda Republicana de Saddam Hussein, que dominava essa região e se desmantelou, agora atacam as tropas americanas. Em Falujá, a 50 quilômetros da capital, cerca de 300 iraquianos desafiaram na quinta-feira 17 o toque de recolher e fizeram uma grande manifestação pela volta do antigo dirigente. “Nos sacrificaremos por ti, Saddam!”, gritavam. No mesmo dia, uma fita com a voz do ex-ditador (segundo a própria CIA) conclamava os iraquianos à resistência. “O que os mentirosos Bush e Blair vão dizer a seu povo e a seu mundo?”, indagou ele.

Para desespero das tropas, os EUA não contam com a ajuda de soldados de outros exércitos para se defenderem, como franceses e alemães. Na sexta-feira 18, com a morte de outro soldado, o número de vítimas americanas no conflito superou o da guerra do Golfo de 1991. “É necessário que o Conselho de Segurança da ONU aprove resoluções para o envio de forças de segurança internacionais”, afirmou o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Igor Ivanov. O CS já discute o envio de tropas da ONU para o Iraque. “Não sei quando isso será decidido pelo Conselho, mas as discussões já começaram”, afirmou o secretário-geral da organização, Kofi Annan.

A confusão não se restringe às tropas de ocupação. O poder do Conselho de Governo iraquiano recém-empossado, por enquanto, é restrito e as instituições tão necessárias a qualquer vida democrática ainda não foram estabelecidas. “Exceto uma ou duas coisas, o Conselho não tem poder de governo”, afirmou o líder da União Patriótica do Curdistão, Jalal Talabani. As ações do Conselho se limitaram até este momento a abolir os feriados de aniversário de Saddam Hussein bem como as datas comemorativas do partido Baath. A incerteza e o desgoverno fazem com que 30% dos moradores de Bagdá desejem a permanência das forças de ocupação
na cidade, segundo pesquisa do canal britânico Channel 4, para que os serviços básicos sejam restabelecidos de uma vez por todas. Foi nesse vácuo de poder que as ofensivas contra os americanos cresceram.
s Disso surgiu a pressa do administrador dos EUA no Iraque, Paul Bremer, de estabelecer um simulacro de governo. Um governo sem poder de decisão que, ainda por cima, ganhou a missão de investigar as atrocidades do antigo regime.

O único benefício irrefutável da guerra contra o Iraque foi a retirada do tirano do poder. No mais, todas as edificações construídas em favor da guerra vão sendo aos poucos desmanteladas. De acordo com o jornal britânico Independent, um grupo de ex-funcionários da CIA exige a cabeça do vice-presidente, Dick Cheney. Entre as tantas mentiras contadas no discurso do Estado da União feito por George W. Bush em janeiro deste ano estava a falsa afirmação de que o Iraque teria tentado comprar urânio do Níger, apesar das advertências da CIA. Essa referência foi incluída no texto de Bush por insistência de Cheney, que também tentou vender o peixe para o Congresso americano. O diretor da CIA, George Tenet, compareceu à Comissão de Inteligência do Senado para dar explicações sobre essas questões. Tenet admitiu que errou ao incluir o dado falso sobre o urânio, fornecido pelo MI6 (serviço secreto externo britânico), no discurso de Bush.

Mas o teatro dos absurdos continua. Falando em Washington aos deputados e senadores americanos na quinta-feira 17, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, afirmou que, mesmo sem nenhuma ligação entre as armas de destruição em massa e o terrorismo, a conexão anglo-americana acertou em lutar contra o Iraque, porque, afinal, derrubaram o regime de Saddam. “Se estivermos errados, teremos destruído uma ameaça que, pelo menos, foi responsável por sofrimento e matança”, disse Blair. Até hoje não foi encontrada uma única arma de destruição em massa e nenhuma das outras oito justificativas dos britânicos para invadir o Iraque, como o suposto desenvolvimento de armas nucleares na África. Blair foi ovacionado 17 vezes no Congresso americano, mas em casa ele enfrenta sérios problemas. Na sexta-feira 18, foi encontrado o corpo do cientista David Kelly, assessor do secretário de Defesa britânico, que denunciou à rede BBC as falsas alegações de Blair sobre o Iraque. Bush, por sua vez, em campanha para a reeleição em 2004, também terá que se explicar para os americanos. Se a história ou a opinião pública de seus países irão perdoá-los, dependerá de alguns fatores. Nos EUA, os eleitores esperam ao menos uma melhora na economia. Já no Reino Unido, a credibilidade do premiê está em jogo. Esse o motivo da correria para reconstruir o Iraque. Mas, para isso, ele teria que abandonar o festival de farsas que encena com Bush.

MORTE MISTERIOSA
  
Kelly: o ex-investigador da ONU no Iraque
 

O cientista britânico David Kelly, 59 anos, tinha hábitos regulares. Por isso, sua família estranhou quando ele saiu na tarde da quinta-feira 17 e não voltou. Na manhã seguinte, seu corpo foi encontrado em Faringdon, a oito quilômetros de sua casa, em um misterioso caso que envolve até o primeiro-ministro, Tony Blair. Kelly foi inspetor da ONU no Iraque nos anos 90 e, até o dia de sua morte, conselheiro do Ministério da Defesa britânico. O cientista especializado em armas de destruição em massa estava sendo acusado de passar informações ao repórter da BBC Andrew Gilligan, que acusou Blair de inflar o dossiê a respeito do suposto arsenal iraquiano. Em depoimento a parlamentares, Kelly disse que esteve com o repórter, mas negou ser a fonte da BBC. Em Tóquio, o porta-voz de Blair afirmou que “haverá um júri independente para investigar o caso”.