Tudo começou como uma brincadeira. Hoje é uma instalação a céu aberto de 250 metros quadrados no alto da favela do Pereirão, o Morro Pereira da Silva, na zona sul do Rio de Janeiro. Feito de restos de tijolos e material reciclado, o Morrinho – como ficou conhecida a maquete que reconstitui as favelas da cidade – é habitado por cerca de mil bonecos, todos feitos de Lego. Desde o primeiro barraco, levantado em 1997, a favela em miniatura não parou de crescer, transformando-se num simulacro da vida dos morros cariocas: tem escadarias, biroscas, praças, lava-rápido, quadra de baile funk, boca-de-fumo e até uma sede do Batalhão de Operações Especiais (Bope), repleta de policiais. Miniaturas de veículos e motocicletas trafegam pelas vielas esburacadas do Morrinho, muitas protegidas com muros de arrimo.

A brincadeira foi levada tão a sério que, auxiliados pelo diretor de cinema Fábio Gavião, que conheceu a maquete em 2001, os “moradores” criaram uma produtora: a TV Morrinho. E, com a ajuda de produtoras de verdade como a Cara de Cão e a TV Zero, a TV Morrinho saiu do mundo da fantasia e já produziu vários documentários. Um sobre surfe, outro sobre o rei Pelé para a Fundação Casa França-Brasil e ainda outro sobre o rio Carioca. “Se as favelas espelham a procura de abrigo pelos excluídos na vida real, dentro do espaço urbano, o Morrinho é a procura de um espaço lúdico de expressão. Dessa contradição nasce a originalidade do projeto, que começou como diversão de uma criança”, conclui Gavião. A maquete já desceu o morro e virou exposição da Mostra Internacional de Arquitetura deste ano. O Shopping Rio Design da Barra da Tijuca, um dos templos de decoração de interiores, já contratou os “arquitetos” do Morrinho para decorar a vitrine de uma de suas lojas.

“Levantei o primeiro barraco porque não tinha dinheiro para comprar brinquedos”, lembra Nelcirlan de Oliveira, que “controla” as comunidades do Fogueteiro, Prazeres, parte do Turano e também o Bope. A empreitada começou quando o rapaz tinha 13 anos e acabara de trocar a casa da avó, com quem morava na Baixada Fluminense, pela dos pais, no Pereirão. Aos 19 anos, ele é invejado pelos garotos da comunidade por ser um dos autores do Morrinho. Assim como na vida real, cada favela dentro do Morrinho tem seu próprio dono, mas os “chefes” não reproduzem as facções criminosas que retalham as áreas pobres da cidade real. “Brincamos com o nosso dia-a-dia”, comenta Rodrigo Perpetuo, um dos donos do Morrinho. Ele é um dos autores de uma das placas expostas na maquete: “Deus sabe tudo, mas não é X-9 (dedo-duro).” Os donos do Morrinho fazem uma catarse dos tempos duros. Quem dá movimento às histórias são os bonecos de Lego que habitam o complexo de 13 favelas.

No melhor estilo neo-realista, no qual a preocupação é refletir rigorosamente a realidade social, a vida no Morrinho não dá lugar
para a utopia. Nem para fugas espetaculares, como demonstra uma das encenações feitas com o traficante Alex, um bonequinho manipulado
por Nelcirlan. Tudo pode estar calmo no Morro da Mineira, uma das favelas cariocas da Tijuca, zona norte do Rio, até a invasão da polícia. Ao ser informado de que Alex está sendo procurado, Nelcirlan corre
com o boneco em disparada em meio a uma “troca de tiros” entre
policiais e traficantes. Ao fazer uma curva em alta velocidade, Alex
perde o controle do volante, capota e morre. “Nas nossas brincadeiras não tem espaço para fantasias”, explica o colega Renato Dias. Os moradores do Morrinho têm uma extraordinária diversidade psicológica.
Do malandro ao honesto, passando pelos traficantes e líderes religiosos, todos estão representados. É o dono do morro quem organiza as
ações de seus personagens.

Empiricamente, a diversão com a maquete reproduz os jogos de estratégia dos RPGs (Role Playing Games). Mas nem só de violência vivem os moradores do Morrinho. Eles também se divertem e vão a bailes funk. Em dia de baile, a brincadeira vira a noite, terminando por volta das 6 h da manhã. Os bonecos ficam na fila esperando para entrar no baile. Cada um que sai precisa voltar para casa e, muitas vezes, a comunidade onde mora é longe. “Não dá para encher a mão de bonecos e trazer para a festa. Tem de caminhar, entrar na fila e esperar. Na volta, a mesma coisa”, comenta Nelcirlan. Em caso de conflito com a polícia, é um grande corre-corre pelas vielas. “Eles não podem sair voando ou se jogar do telhado de um barraco.”