O sucesso, em doses excessivas, pode provocar efeitos colaterais. Na sua oitava viagem internacional, na qual visitou Portugal, Inglaterra e Espanha, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva viveu, pela primeira vez, situações desconfortáveis, cometendo gafes ao desdobrar-se em improvisos. Desde o primeiro mês de governo, Lula percebeu a atração que exercia lá fora, quando foi aplaudidíssimo por seus colegas europeus e pela mídia internacional durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. Seu carisma ultrapassara as fronteiras e a idéia de que ele pode vir a ser um líder dos países emergentes ganhou força. Foi o suficiente para ingressar no clube da diplomacia presidencial, inaugurado por Fernando Henrique Cardoso. Lula, que tanto criticou FHC por suas frequentes viagens internacionais, já o superou. De janeiro a julho, visitou nove países, enquanto FHC havia realizado três viagens por cinco países no mesmo período.

Quando todos temiam que um governo petista fosse se indispor com
o império americano – tendo à frente o conservador e belicista George
W. Bush –, Lula surpreendeu. Conseguiu se entender com o companheiro da Casa Branca a ponto de realizar um inédito encontro de cúpula no dia 20 de junho com a participação de vários ministros de ambos os lados, em Washington. Até então, os EUA só haviam realizado esse tipo de reunião com países muito próximos, como Canadá, México e os que integram a União Européia. Lula tem cumprido sua promessa de fortalecer o Mercosul e de brigar com unhas e dentes pelos interesses comerciais brasileiros lá fora.

Paparicos – Ao decolar de São Paulo às 8h da quarta-feira 9, em direção a Lisboa, Lula afastava-se de um cenário interno complicado, com a primeira greve de seu governo, realizada pelos servidores públicos, e a confusão em torno da negociação sobre a intrincada reforma da Previdência. Mas lá fora nem tudo foram flores. No primeiro dia, foi instado a provar a “viabilidade das soluções alternativas que sempre preconizou” pelo deputado João Bosco Mota Amaral, presidente da Assembléia da República, o Parlamento português. Em compensação, foi cercado de paparicos pelo presidente de Portugal, Jorge Sampaio, e pelo primeiro-ministro, Durão Barroso. Mas mostrou-se contido demais, a ponto de o jornal português O Público criticar a falta de povo: “… o presidente brasileiro tem parecido espartilhado pelo fato (terno) e gravata, que o fazem suar em bicas.” Foi a senha para Lula afrouxar mais o espartilho imposto pelos padrões da diplomacia na etapa seguinte da périplo.

Soltou o verbo, no domingo 13, em Londres, durante reunião da Governança Progressista, como agora é batizada a chamada terceira via do primeiro-ministro britânico Tony Blair. Travou um verdadeiro duelo verbal com o colega polonês Alexander Kwasniewski. “Se tem uma coisa que eu admiro nos EUA é que primeiro eles pensam neles, em segundo lugar, neles e em terceiro, neles também. Se sobrar tempo, pensam um pouco neles outra vez”, disparou Lula. O polonês foi mais realista do que o rei e tomou as dores dos americanos, lembrando que eles ajudaram na democratização do Leste Europeu. Lula pediu a tréplica. Ressaltou que os EUA também ajudaram para que “houvesse golpes militares na América do Sul”. E emendou com um ataque ao embargo econômico americano a Cuba. Foi o suficiente para azedar o clima com a Casa Branca. A embaixadora Donna Hrinak estranhou: “A declaração do presidente Lula não reflete o objetivo de relação de colaboração que ele e o presidente Bush estabeleceram durante sua bem-sucedida visita a Washington, no mês passado.” O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, explicou que as palavras do presidente foram mal interpretadas.

Já que estava sem o espartilho, Lula improvisou várias vezes em seus discursos. Numa delas, a gafe: descartou a reeleição de Blair ao afirmar que ele não será o anfitrião do próximo encontro. Em seu segundo mandato, Blair quer a reeleição, possível pelas leis britânicas, mas enfrenta sérios desgastes devido ao seu apoio à guerra contra o
Iraque. Lula tentou descontrair o ambiente ao virar-se para o primeiro
-ministro e brincar: “Era preciso que o Tony Blair tivesse convidado
o Bush para ele falar.” Alguns riram, mas Blair expressou apenas um sorriso amarelo. O estilo metafórico e improvisado não foi bem recebido pela imprensa britânica.

Aquele abraço – No artigo intitulado “Lula diz que um abraço pode salvar o mundo”, o jornal The Times ironizou a afirmação do presidente de que política também se faz dando um abraço, numa referência à importância das relações humanas na política. O periódico considerou populista a análise de Lula sobre a divisão entre ricos e pobres. Mas o presidente também recebeu fartos elogios, como o do sociólogo Anthony Giddens, guru de Blair: “Lula quer mudar o Brasil, mas ele pode mudar o mundo.” O presidente saiu da Inglaterra com o apoio do primeiro-ministro à pretensão do Brasil de conquistar uma vaga permanente no Conselho
de Segurança da ONU.

O estilo Lula de diplomacia presidencial já provoca polêmica. Para o coordenador do Núcleo de Pesquisas de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, José Augusto Guillon Albuquerque, houve um acúmulo de atitudes inconvenientes nessa viagem, considerada por ele como negativa: “Criou-se uma política externa voltada para os objetivos pessoais do presidente Lula, de assumir o papel de uma liderança internacional, uma forma de compensar o desgaste interno. O presidente procura a superexposição e fala coisas que caem bem nos ouvidos da opinião pública. Ele coloca a agenda da política externa do País em segundo plano, diminuindo a sua credibilidade.” Já o coordenador do Núcleo de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Paulo Vizentini, tem uma avaliação positiva. “Lula tem seguido a linha que o Itamaraty desenha para a nossa política externa. O Brasil está operando em espaços que estavam vagos, saindo em defesa de países em desenvolvimento. Os improvisos têm os seus riscos, mas ao mesmo tempo passa autenticidade”, observou.

Na segunda-feira 14, Lula seguiu para Madri, onde quebrou o protocolo durante jantar oferecido pelo rei Juan Carlos: vestiu um terno no lugar da tradicional casaca. O Itamaraty já havia avisado que o presidente brasileiro não usaria traje de gala. Gafe mesmo foi cometida por um ajudante-de-ordem espanhol quando Lula e Marisa chegaram, a bordo de um Rolls-Royce negro, na residência oficial do rei, na terça-feira 15. O presidente desembarcou e o encarregado do cerimonial fechou a porta com a primeira-dama dentro do carro. Quem resgatou Marisa foi o próprio rei Juan Carlos corrigindo a gafe. O jornal espanhol El País classificou Lula como representante da “quarta via” da esquerda, por ter adotado discurso moderado, e comentou que com seus improvisos o presidente comete “imprudências” em seus discursos. Mas, no final, o saldo foi positivo. Os próprios jornais espanhóis destacaram a importante aliança estratégica formada pelos dois países para impulsionar a integração do Mercosul com a União Européia. Não é pouca coisa: a Espanha é o país da Europa que mais investe no Brasil hoje.