Eis uma história capaz de matar de raiva um apreciador das artes plásticas. Quem conhece o Museu Guggenheim de Nova York só a partir da última década, nunca chegou a ver o impressionante mural de azulejos Alice, de 1967, do artista espanhol Joan Miró, criado especialmente para o museu. Encravada na parede do salão de entrada circular, a obra estava escondida atrás de um tapume de madeira, desde 1990. O Guggenheim é assim. Se dá a estes luxos inconcebíveis, já que é uma das entidades mais ricas entre as que acolhem a arte dos séculos XX e XXI, com acervo tão prolífico que a solução para descarregá-lo foi criar franchises globalizadas. Não é, portanto, exagero afirmar que o Guggenheim virou uma espécie de McDonald’s da arte – refinada, é claro. Com quantidade e qualidade tão fabulosas de material disponível, é possível montar exposições sobre qualquer tema, sob qualquer justificativa. Seguindo esta linha, o quartel-general do museu, situado na Quinta Avenida de Manhattan, está exibindo a mostra De Picasso a Pollock. Um tour pelos grandes momentos do cubismo ao expressionismo abstrato, cobrindo o período dos anos 1910 a 1960.

No total, são 130 obras, entre esculturas, pinturas e desenhos de 48 mestres da arte moderna. Além dos artistas do título, também figuram o americano Alexander Calder, o italiano Amedeo Modigliani, os franceses Georges Braque, Henri Matisse e Juan Gris, o bielo-russo Marc Chagall, o russo Vassili Kandinski e o holandês Piet Mondrian, só para citar os mais conhecidos. O motivo para a convocação desta constelação nada mais é que a reinauguração do esquecido painel de Miró. Claro que não há desculpa para seu emparedamento. Mas o presidente da Fundação Solomon R. Guggenheim, Thomas Krens, tentou uma justificativa para ISTOÉ. “Muitas mostras começam logo naquele ponto, onde o mural foi instalado. Então, fica difícil organizar uma exposição em que a obra não interfira com o estilo do evento. Por isso, fomos obrigados a cobri-la”, disse Krens. Alicia ou Alice, como preferia o artista, se transformou assim numa espécie de velha tia louca que a família esconde das visitas no porão. Para se redimir do pecado, a curadora Lisa Denninson resolveu montar uma mostra especial que não apenas acomodasse o mural, como girasse em torno dele. “Nós ainda não tínhamos tido uma boa oportunidade para usar o mural como peça central de uma exposição. Agora, criamos um contexto especial”, afirma Lisa.

Teimosia – O trabalho está embutido na base das cinco rampas que internamente circundam o prédio do Guggenheim. É um dos derradeiros de Joan Miró, que foi comissionado por Thomas Messer, então presidente da Fundação Solomon R. Guggenheim, como uma homenagem póstuma a Alicia Patterson, mulher de Harry Guggenheim. Executado entre 1965-1967, tem cerca de sete metros de largura com 190 plaquetas de cerâmica moldadas pelo azulejista, também espanhol, Josep Llorens, colaborador na execução. Trata-se de uma peça absolutamente característica do estilo Miró, que criou uma cosmologia de seus próprios símbolos-cores – um fundo cinza, que adquire tonalidades prateadas de acordo com a incidência da luz, com traços e pontos emblemáticos em amarelo, preto, vermelho e azul. No meio foi grafado o nome Alice.

Houve quem reclamasse da grafia do nome da homenageada. Pediram revisão. Teimoso, Miró rebateu dizendo que havia feito uma “interpretação livre”, e recusou a correção. Foi preciso muita lábia para que Messer convencesse o artista a mudar o original. Miró, então, elaborou o painel da seguinte forma: dependendo do lado que se olha, pode-se tanto ler Alice quanto Alicia, como apontou tempos depois o próprio autor. A obra é o passo inicial para a jornada, ladeira acima, onde estão expoentes das várias
escolas de arte moderna. Começando, é claro, por Picasso. Neste
ponto estão arranjados quatro trabalhos do princípio da trajetória cubista-analítica do artista, como o emblemático Acordeonista, Céret (1911). Eis um bom exemplo de cubismo, no qual formas geométricas criam uma nova visão, dando à tela bidimensional um sentido tridimensional. É curioso, no entanto, o contraponto feito com outra
obra do pintor, Mulher de cabelo amarelo (1931), a tela vedete para os visitantes. Neste quadro, há uma troca dos tons pálidos e das linhas de ângulos retos dos primeiros trabalhos por uma orgia de curvas sensuais, evocativas na obra de Matisse.

A subida da próxima rampa é recompensada com novas maravilhas da arte do século XX. Passa-se, por exemplo, pelo Violinista verde, de Chagall, um óleo sobre tela de 1923-1924. Note-se aqui também as características geométricas que fazem a figura verde saltar do quadro. O alemão Franz Marc vem na sequência com Vaca amarela (1911), mostrando um bovino trigueiro com manchas azuis, dando coices no ar num cenário de vales e montanhas de cores intensas. De Kandinski – de quem o Guggenheim tem quantidades absurdas de trabalhos – são exibidas 12 aquarelas abrangendo o período de 1910 a 1930. É um arranjo absolutamente didático evidenciando a transformação do pintor, que passa das viagens da imaginação à abstração geométrica.

Expressão – Três trabalhos de Mondrian mostram o equilíbrio de composição de faixas verticais e horizontais. Em seguida vem o americano Jackson Pollock com dois quadros imbuídos de seu estilo inconfundível: os jorros de cores. Ele costumava espremer bisnagas ou então furar latas de tinta para depois espalhá-la sobre a tela. Já se disse que Pollock só conseguia máxima expressão nas telas enormes. Mas a obra Cinza oceânico (1953), de dimensões bem modestas, desmonta a tese para criar uma imagem singular traduzida em tonalidades de cinza, vermelho, branco e verde que parecem reproduzir o Atlântico Norte – como se sabe, Pollock trabalhava à beira dele, nas praias nova-iorquinas dos Hamptons. Sem dúvida, é um encerramento dos mais expressivos para uma exposição no mínimo fabulosa. E atenção: quem não puder ir à mostra, infelizmente talvez ficará mais uma década sem ver Alice, que certamente será outra vez escondido dos visitantes.