Responsável pelo setor de psiquiatria da ONG Médicos sem Fronteiras, brasileiro diz que os recursos para ajudar pessoas a vencer os traumas são escassos

SOLIDARIEDADE Souza diz que observar o sofrimento e não fazer nada é o ato mais medíocre do ser humano

Há sete anos o psiquiatra Renato Souza, 37 anos, deixou o consultório em São Paulo para realizar um grande sonho: cuidar de pessoas que vivem em áreas remotas vitimadas pela violência, catástrofes naturais ou pobreza extrema.
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Não podemos subestimar a capacidade que temos de nos recuperar de eventos como o tsunami
Por isso, o jovem médico, especializado em psiquiatria pela Universidade de São Paulo e pelo Instituto de Psiquiatria de Londres, ingressou na organização Médicos sem Fronteiras (MSF), entidade sem fins lucrativos que reúne profissionais de saúde dedicados ao atendimento dessas populações.

Hoje à frente do Programa de Saúde Mental do MSF, ele diz que o trabalho oferecido pela organização pode não resolver todo o trauma que essas pessoas sofreram, mas tem ajudado muitas delas a continuar de alguma forma as suas vidas com a dignidade que todo ser humano merece. A seguir, a entrevista que ele concedeu à ISTOÉ.

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As crianças são capazes de passar por situações muito traumáticas e não apresentar nenhum problema mental

ISTOÉ – Quais os principais problemas mentais de populações expostas a traumas?

Renato Souza

Quadros psiquiátricos graves como stress póstraumático, ansiedade, depressão e psicoses são identificadas em índices altos nessas populações. Isso ocorre porque violência em massa e tortura, por exemplo, são fatores de risco para muitos transtornos mentais.

ISTOÉ – O que os indivíduos que passam por situações extremas como essas fazem para diminuir o impacto que o sofrimento pode ter em suas vidas?

Renato Souza

As pessoas encontram diferentes formas para conviver com o trauma. E o que vai diferenciar a reação de cada uma depende de uma interação entre os fatores traumáticos e as características sociais protetoras de saúde mental de que dispõem. Entre elas, estão o apoio social e familiar e o suporte comunitário.

ISTOÉ – Há outros fatores que interferem nisso?

Renato Souza

Provavelmente aspectos biológicos. O mais importante é que elas recebam um diagnóstico adequado e um tratamento eficaz. Quanto mais rápido isso for feito, melhor.

ISTOÉ – Quais os primeiros socorros prestados a essas pessoas?

Renato Souza -Em emergências humanitárias oferecemos primeiro o auxílio psicológico para que retomem suas atividades diárias o mais cedo possível.

 

ISTOÉ – Como é esse atendimento?

Renato Souza

Entre outras coisas, há um esforço para garantir um ambiente de proteção e confidencialidade, organizar um suporte social ou familiar imediato, estabelecer um contato terapêutico e auxiliar a pessoa a resolver problemas que foram trazidos pelo evento violento.
Também analisamos se o trauma traz risco de vida à pessoa. Verificamos, por exemplo, se o que aconteceu provocaideias de suicídio.

ISTOÉ – De quais recursos vocês dispõem para tratar essas pessoas?

Renato Souza

O primeiro é disponibilizar indivíduos treinados para oferecer terapias breves quando o quadro psiquiátrico é leve ou moderado. Esse trabalho é feito por conselheiros de saúde mental, profissionais das próprias comunidades ou psicólogos da organização.
Eles orientam as pessoas a encontrar estratégias que as ajudem a seguir suas vidas. Sabemos que, quando o nível de stress é muito alto, se perde a capacidade de fazer isso.
O outro recurso é o tratamento farmacológico. Nesse caso, é indicado para pacientes com quadros mais graves de depressão ou psicoses.

ISTOÉ – Mas o que vocês dizem para indivíduos que passaram por situações tão extremas de sofrimento?

Renato Souza

Sabemos que não podemos subestimar a capacidade que temos como seres humanos de nos recuperar de eventos traumáticos como o tsunami (ocorrido na Ásia em 2004). E, sem dúvida, grande parte das pessoas se recupera, embora em algumas o evento traumático possa provocar danos psicológicos que dificultam esta capacidade. Em geral, nas áreas em que trabalhamos, essas pessoas buscam auxílio de curandeiros ou profissionais de saúde locais. O importante para nós é aumentar a capacidade destes profissionais a fim de tratar esses problemas, que incapacitam as pessoas a continuar suas atividades.

ISTOÉ – É possível apagar as marcas que as tragédias deixam?
Renato Souza – Boa parte dos traumas causados por tragédias pode ser tratada. Mas para isso é fundamental que os cuidados estejam disponíveis.
O tratamento é efetivo e pode fazer com que as pessoas sofram menos. Infelizmente, porém, poucas organizações e ministérios de saúde locais oferecem este tratamento à população.
ISTOÉ – A saúde mental ainda é negligenciada nessas circunstâncias?

Renato Souza

Sim. É umas das áreas mais negligenciadas da medicina nas regiões em que trabalhamos. Raramente existem profissionais capacitados para oferecer cuidados deste gênero. Mesmo a medicação básica para tratar a maioria dos quadros psiquiátricos dificilmente está presente. A verdade é que fazemos muito pouco para tratar as vítitmas das grandes tragédias.

ISTOÉ – Que consequências esse descaso pode ter para as vítimas e para os países atingidos?

Renato Souza

Na saúde, sabemos que problemas de saúde mental não tratados levam a uma piora no prognóstico de outras doenças, como o desenvolvimento de hipertensão e diabetes. Além disso, portadores de transtornos mentais não tratados em geral faltam mais ao trabalho e têm uma produtividade menor, o que pode trazer repercussões em nível econômico também.

ISTOÉ – O que causa mais danos à mente? Uma guerra, uma catástrofe natural, uma crise política…?

Renato Souza -O maior dano à mente é causado por violência extrema. Abuso sexual e tortura são devastadores e em grande parte das vezes levam a um problema mental importante.

ISTOÉ – E quanto às crianças? Como as tragédias influenciam suas vidas?

Renato Souza

Elas dependem primordialmente do suporte oferecido por familiares próximos. As crianças são capazes de passar por situações muito traumáticas e não apresentar nenhum problema mental, desde que o apoio oferecido pelos pais seja consistente. É importante que eles garantam proteção, mantenham rotinas, estabeleçam um ambiente no qual haja comunicação e que as perguntas feitas pelas crianças sejam respondidas de maneira clara. Grande parte das que desenvolvem doenças mentais em emergências humanitárias não dispõe desses mecanismos, devido à morte dos pais, por exemplo.

ISTOÉ – E como elas manifestam seu sofrimento?

Renato Souza

Os problemas mentais mais frequentes são sintomas de stress póstraumático dificuldade para dormir, entre eles e a enurese noturna.

ISTOÉ – Qual a atuação da organização no Brasil?

Renato Souza

Mantemos uma Unidade de Atendimento de Emergência dentro do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Desejávamos estar próximos a uma população que, devido à violência, não tinha acesso a cuidados de saúde. O objetivo era reduzir o tempo entre o trauma e o atendimento.

ISTOÉ – Quais os resultados obtidos?

Renato Souza

Em pouco mais de dois anos de trabalho, realizamos cerca de 19 mil atendimentos. Com relação ao programa psicossocial, foram feitos 2,8 mil atendimentos para cerca de 1,2 mil pessoas, de diferentes idades, com diversas demandas. Em sua maioria, os pacientes são mulheres adultas (47%) apresentando quadros depressivos, ansiosos e psicossomáticos, e as crianças/adolescentes (43%) com problemas de aprendizagem e agressividade.

ISTOÉ – Na sua experiência, qual a história que mais o marcou?

Renato Souza

Vivi muitas, mas duas me marcaram bastante. Nunca me esqueço de uma paciente que encontrei no norte de Uganda. Seus lábios haviam sido cortados pelos rebeldes do LRA (Exército de Resistência do Senhor). Ela me contou que, por causa da violência que sofrera, várias vezes pensou em suicídio. O que a mantinha viva era o tratamento que seguia.

ISTOÉ – E a outra?

Renato Souza

Ocorreu quando estive no Paquistão, depois do último terremoto. Lembro-me de uma criança que estava acamada. Os médicos diziam que ela não tinha nenhum problema físico, mas, mesmo assim, não se movia nem se comunicava. Conversamos com o pai e começamos a estabelecer atividades com ela, ainda no leito. A princípio, a criança nos evitava. Depois de algumas horas passou a brincar com brinquedos que levamos. Surpreendentemente, uma hora depois se levantou e pediu a seu pai para que a levasse para casa. Era uma criança com stress traumático agudo que se restabeleceu rapidamente com técnicas psicológicas simples.

ISTOÉ – Já encontraram resistência por parte de grupos extremistas?

Renato Souza

Enfrentamos resistência para oferecer atendimento a várias populações, não necessariamente por parte de grupos extremistas. Em 2007, por exemplo, nossa entidade teve negado acesso de entrada pelo governo de um país da África onde milhares de pessoas eram vítimas de violência.

ISTOÉ – Qual o perfil dos médicos que fazem esse trabalho?

Renato Souza

São pessoas que viajaram bastante e que tiveram experiências em culturas diferentes. São jovens com no mínimo dois anos de experiência na medicina. Nossos médicos não estão muito preocupados com dinheiro, já que o salário inicial é baixo, e sim em encontrar maneiras de reduzir o drama humano.

ISTOÉ – Que lições o sr. tira dessa convivência com o sofrimento humano tão de perto?

Renato Souza

Aprendi que é fundamental trabalhar em equipe. Em nosso trabalho, não atingimos nada sozinhos. O que hoje também tenho certeza é de que observar o sofrimento e não fazer nada é o ato mais medíocre que um ser humano pode executar. A capacidade de mudança está dentro de cada um de nós, basta não aceitar e se mobilizar para mudar.