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O pequeno e calmo G*, de apenas 9 dias, nem abre os olhos durante o passeio no colo da mãe, Carla, numa manhã de sol em um pátio de paredes cor-de-rosa. Y, 12 dias, mama com vontade, enquanto Francislaine acaricia o cabelo macio da filha recém nascida. Sorridente e esperta, M.L., 1 ano e 2 meses, faz gracinhas para Wagnéia, que, em troca, enche a menina de beijos e abraços.

Doces cenas entre mulheres e seus bebês, que remetem a um dia tranquilo num parque ou numa praça ensolarada. Mas, na verdade, elas estão num lugar onde ninguém gostaria de criar um filho: um presídio. Por sorte, são detentas do Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, em Vespasiano, região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais.
 
Inaugurada em janeiro, é a primeira unidade do País com condições dignas de receber presas com filhos de até 1 ano. Uma iniciativa que faz do Estado pioneiro de um movimento pela humanização dentro do sistema prisional brasileiro, abarrotado com cerca de 30 mil mulheres num total de 470 mil confinados. O número de presas cresce 11% ao ano, enquanto o de homens aumenta a um ritmo de 4%. A expansão da população carcerária feminina trouxe o desafio evidente de lidar com cada vez mais detentas grávidas ou com filhos pequenos.
 
Com 47 mulheres acompanhadas de seus bebês, o Centro de Referência é livre de celas e grades nos seus quatro mil metros quadrados cercados por árvores. São alojamentos com até oito camas e oito berços, que permanecem de portas abertas, dando acesso à brinquedoteca, aos banheiros, à área para banho de sol, ao espaço com tevê. Nas paredes, fotos da família inclusive de outros filhos e desenhos de personagens infantis como decoração.
 
Nos corredores, ouve-se o chorinho delicado e os gritinhos alegres dos pequenos, à vontade no lar que conhecem desde que nasceram. No alto das portas, bonequinhos coloridos com dizeres como “Seja bem-vindo”, tal qual nas maternidades tradicionais. O espaço alugado foi no passado uma clínica psiquiátrica. A reforma custou ao governo estadual R$ 150 mil. E a demanda é tão expressiva que as gestantes já nem vão mais para lá (apesar do nome).
 
Elas permanecem em uma ala no Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, em Belo Horizonte, até darem à luz e seguirem com suas crianças para o centro. A ideia é ampliar o local no ano que vem, para oferecer 100 vagas e ter capacidade para receber também as grávidas. “Começamos a pensar nesse projeto em 2007”, diz Maurício Campos Júnior, secretário de Defesa Social do Estado. “No ano seguinte, percebemos o aumento no número de mulheres presas e que elas precisavam urgentemente de uma unidade adequada às necessidades da maternidade.”
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EXTREMOS Criança e agente: Convivência 
 

Enquanto isso, no resto do País, muitos meninos e meninas passam a infância em presídios e cadeias, pois não têm quem possa cuidar deles. A maioria nem tem infraestrutura para abrigar adultos, o que dirá crianças. Superlotação, falta de condições de higiene, goteiras e infiltrações em tetos e paredes, insetos por todos os lados. Boa parte divide colchonetes com outras presas.
 
Alguns tantos dormem direto no chão. Sem contar os maustratos que as mães sofrem e os filhos presenciam. Gestantes não costumam ter regalias. Vão para o banho frio e são obrigadas a aceitar a comida intragável ou ficar com fome. No final de outubro, por exemplo, uma denúncia mostrou que 88 mulheres viviam presas em quatro contêineres no Presídio Feminino de Tucum, no Espírito Santo.
 
São fatores que fazem da unidade de Vespasiano um sonho perfeito dentro do sistema prisional. As agentes penitenciárias são firmes, mas conseguem ser gentis. Todas têm formação técnica em enfermagem. Há uma equipe multidisciplinar à disposição: ginecologista, pediatra, enfermeira, psicóloga, dentista, assistente social e advogada. As presas participam de cursos de artesanato, cabeleireiro e auxiliar administrativo para, no futuro, terem maiores chances de reinserção social. Também se ocupam dos cuidados com os filhos e são responsáveis por lavarem a própria roupa e as do bebê, além de se revezarem na faxina.
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CALMA Joice nina a filha de três meses
  

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O clima é de paz, ornamentado por onipresentes sorrisos maternos orgulhosos. A maioria das mulheres do sistema prisional brasileiro – 90% – está atrás das grades cumprindo pena por tráfico de drogas. Há as que atendam aos apelos do parceiro preso para lhe levar drogas na cadeia ou dar continuidade ao “negócio”. Ou simplesmente vivem na companhia de raficantes
e acabam consideradas cúmplices.
 
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NINHO Os alojamentos são claros e espaçosos, com as camas das mães ao lado dos bercinhos. Personagens infantis e fotos de família decoram as paredes.
O mais jovem morador, de 9 dias, no colo da mãe. Taciana brinca com a filha J.
 
Outras veem como sendo a saída para manter a casa. Wagnéia Aparecida Silva, 29 anos, ajeita o uniforme (camiseta branca e calça verde-água) antes de se sentar para contar sua história. Vem com a alegre M.L. no colo.
 
“Fui representante de vendas. Fiquei viúva, faltou dinheiro, me desesperei”, diz. “Amigos me disseram que no crime eu me daria bem.” O marido, faz questão de frisar, era trabalhador. O segundo companheiro, pai da menina, também está preso. “Mas foi porque eu traficava e ele via eu fazer isso em casa. Ele não mexia com droga diretamente”, defende. Taciana Pereira, 21 anos, mãe de J., 9 meses, diz que nunca foi criminosa. Gostava, no entanto, de ser mulher do patrão da favela pelo respeito e status da posição e o dinheiro que chegava a suas mãos.
 
“Hoje, sei que era uma ilusão.” Wagnéia e Taciana foram umas das primeiras detentas a chegar ao Centro de Referência. Gostam do conforto e da liberdade que o lugar oferece. Mas sabem que estar ali obriga suas filhas ao confinamento também. E a culpa por isso geralmente vem à noite, junto com as lágrimas. A iniciativa do governo mineiro se adiantou à lei sancionada em maio, que obriga os Estados a oferecer espaços adequados para as presas mães poderem criar seus filhos. O projeto é de autoria da deputada federal Fátima Pelaes (PMDB), do Amapá, que luta pela sua aprovação há 14 anos. Fátima nasceu e viveu num presídio até os 3 anos de idade.
 
A mãe dela cumpria pena por crime passional e engravidou da deputada já na prisão mista (ainda existem 426 penitenciárias nesse modelo). “Há quem diga que cadeia não é lugar de criança. Não é mesmo. Mas há milhares nessas condições, que dividem celas com outros detentos. É uma saída necessária”, diz Fátima.
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“Não há tratamento para aceitar a dor de perder um pedaço da vida”
Wagnéia Silva, sobre o acompanhamento psicológico que a preparava para a separação da filha

 
O confinamento pode prejudicar o desenvolvimento psicológico infantil, a capacidade de aprendizado e levar ao sentimento de rejeição. Um ponto polêmico da lei é a obrigatoriedade de as crianças permanecerem até os 7 anos com a mãe. Seria muito tempo, dizem os críticos. A deputada garante que elas poderiam sair para ir à escola e que é melhor ficar com a mãe do que sozinho ou malcuidado. São Paulo é um dos primeiros Estados a se adequar. Já estão em construção dois presídios femininos, um em Tupi Paulista e outro em Tremembé, com alas especiais.
 
Outras cinco penitenciárias estão em processo de licitação. O Ceará também estuda licitações. “Quando o homem é preso, é a mulher que mantém a unidade familiar em casa”, afirma Andréa Neves, presidente do Serviço Voluntário de Assistência Social (Servas) e irmã do governador Aécio Neves. Se a presa for ela, o mais comum é que os filhos sejam entregues aos parentes e o marido a abandone. Fortalecendo a relação mãe-bebê, o risco e o impacto são menores.
 
O Centro de Referência de Vespasiano trabalha insistentemente essa ligação. Mas também foca no momento da separação. “Lembramos as mães que é apenas um até logo”, diz a psicóloga Diana Mara da Silva. As crianças são encaminhadas para as famílias das presas. Raramente, garante a psicóloga, elas acabam em abrigos.
 
“Procuramos alguém, nem que seja um parente mais distante ou um amigo, que possa cuidar bem desse bebê.” Todas são gratas por estarem onde estão, pela oportunidade de poderem presenciar o primeiro ano das crianças e ter a chance de amamentar. No entanto, por melhor que seja essa fase, nada ameniza a hora de entregar o bebê. Parece ser o único assunto que faz as mães-detentas olharem com tristeza para seus filhos, demonstrando medo pelo futuro. “Dói só de pensar”, diz, entre lágrimas, Francislaine Garcia, 19 anos, mãe da pequena Y.
 
“Não quero acreditar que vai acontecer”, diz a séria Carla Souza, 20 anos, mãe de G. Para Taciana, mãe de J. “não existe se preparar para se separar de filho”. M.L., filha de Wagnéia, deixou a mãe na sexta-feira 20 para viver com uma tia. A detenta tem sido acompanhada de perto pela psicóloga. “Mas não há tratamento que faça alguém aceitar a dor de perder um pedaço da vida”, diz, enquanto a menina lança mais um sorriso encantador para a mãe guardar de lembrança. E ter um motivo forte para nunca mais cometer qualquer ato que possa jogá-la atrás das grades.

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Criando filhos na prisão
Algumas das detentas do Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, em Vespasiano, Minas Gerais, contam como é cuidar das crianças lá, falam do medo da hora da separação e garantem que nunca mais se envolverão com o crime

Carla Souza, 20 anos, mãe do recém-nascido G.*

“Fui presa acusada de tráfico de drogas, mas ainda vou a julgamento. Já estava grávida de sete meses. A droga que os policiais encontraram na minha casa era do meu irmão. Ele não foi preso por ser menor de idade. Tinha 200 gramas de maconha e 17 cigarros já enrolados. Alguém fez uma denúncia no meu nome, provavelmente vizinho. Minha mãe não sabia que tinha isso em casa. Com o pai do meu filho morei junto seis anos. Nos separamos ainda antes de eu ser presa, por incompatibilidade. Temos outro filho, de 4 anos. Ele mora com o pai, que é operário em uma fábrica. Meu ex-marido me pergunta porque cai nessa vida. Por mais que a gente tenha se separado, ficou triste pelo que aconteceu. Meu irmão disse que se sente culpado, mas não acho que ele vá parar de vender droga. Quando fui presa, me levaram para a cadeia pública da minha cidade. Era um horror. Quase não podia receber visita, banho de sol era uma vez por mês, a comida era ruim. Como eu já estava grávida, passei mal e não me ajudaram. Tomava banho frio. Quando me disseram que eu vinha para cá, fiquei com medo. Me senti insegura. E se fosse pior e estivessem me enganando, dizendo que seria melhor para mim? Quase não acreditei quando vi esse lugar, os alojamentos, os brinquedos para as crianças. As agentes são gentis. Participei de um curso para cuidar melhor do neném. Posso passear com ele, sair para o pátio a qualquer hora. Fico feliz de não ser um presídio qualquer, onde posso criar meu filho. Mas, de qualquer forma, é um lugar fechado. Ele também não tem liberdade que deveria ter por minha causa. Nem penso em ser condenada. Foi tudo um engano. Tenho certeza que saio daqui com meu filho nos braços. Se isso não acontecer, quero que ele fique com a minha mãe até eu cumprir a pena. Enquanto isso, como sou católica, quero batizá-lo logo, mesmo que seja aqui.”

Francislaine Garcia, 19 anos, mãe da recém-nascida Y.
“Estou presa por tráfico de drogas. Me prenderam na casa do meu namorado.
Ele que mexe com isso, vende crack. Mas não vai preso por ter 17 anos. Sobrou para mim. Quando fui para a cadeia já estava grávida. Fiquei com outras detentas, amontoada, quase não tinha banho de sol. Quando me disseram que eu viria para esse centro, senti alívio. Me explicaram que não tinha grades e eu não ficaria trancada com minha filha, poderia ficar na companhia dela o tempo todo num lugar agradável. A única preocupação é que sou de uma cidade do interior, há cinco horas daqui. Estou longe da família, mas aqui é melhor para minha neném. É minha primeira filha. Fiquei emocionada quando ela nasceu. Nunca vou esquecer o chorinho dela na hora. Chorei junto e  inda me emociono ao lembrar. E ela é tão calminha. Prefiro não pensar na separação. Acredito que não serei condenada, tenho fé. Se acontecer, quero que a guarda da Y. fique com minha tia que me criou. Além de cuidar dela, passo o tempo lendo romances. Um dia vou fazer psicologia e escrever um livro, talvez sobre essa experiência. Estou separada do meu namorado. Ficamos quase dois anos juntos, mas nos distanciamos durante a gravidez. Saindo daqui, não volto com ele. Não quero a vida que ele quer.”

Wagnéia Aparecida Silva, 29 anos, mãe de M. L., 1 ano e dois meses
“Fui uma das primeiras detentas a chegar aqui, em janeiro. Me prenderam no sexto mês de gestação. Minha pena é de 11 anos, por tráfico de drogas. Mas graças ao meu bom comportamento e a minha vontade de trabalhar na prisão, terei redução da pena. Quando meu marido morreu, não sabia como poderia ganhar a vida. Fui representante de vendas. Mas depois que fiquei viúva, faltou dinheiro, me desesperei. Amigos disseram que eu poderia me dar bem no crime. Não sou criança, sei que não era certo, só que tudo estava muito complicado para mim. Tinha meu filho para criara. Hoje ele tem 11 anos. Meu marido nunca foi criminoso. Era trabalhador, encarregado de obras. Com o pai
de M. L. estou há três anos. Também foi preso, mas porque estava em casa comigo e sabia que eu traficava. Na cadeia sofri muito. Passava mal por causa da gravidez e ninguém ajudava. Em cadeia pública gestante não tem direito a nada. Dormia no chão. Mas a M. L. já nasceu no Estevão (Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto), onde tem uma ala para gestantes e crianças. É parecido com o centro de referência, tem condições melhores, mas é dentro do presídio. Quando cheguei aqui achei que estava numa creche. Foi até melhor do que eu esperava. Tem os cursos como o de auxiliar administrativa que nos ajudar a ter uma chance no mercado de trabalho na hora que sair da prisão. A Alimentação é saudável, a comida é saborosa. Os remédios das crianças são dados em horários certos. É uma estrutura que me ajuda a criar melhor minha filha e também me preparar para a ressocialização lá fora. Aqui, aprendi a ter mais disciplina. também me sinto menos stressada. Minha filha ficará com minha irmã. Ela está com mais de 1 ano e continua aqui porque o processo da guarda está atrasada. Mas ela já vai embora dia 20. Procuro não pensar muito nisso. Estou fazendo um acompanhamento mais regular com a psicóloga para me preparar. Não há, porém, tratamento para aceitar a dor de perder um pedaço da vida. Vai doer muito, mas é a realidade, não dá para fugir. Quando ela sair, vou embora também. Serei encaminhada para uma penitenciária. Poderia ir para a Estevão, que é um bom lugar para ficar. Mas vou optar por estar numa cidade próxima a minha família. Pode não ser um local inferior a esse aqui. Mas minha expectativa é poder trabalhar para reduzir minha pena e juntar algum dinheiro que me ajude a recomeçar a vida. Também ajuda a ocupar a cabeça. Junto com minha filha, não vi o ano passar. Mas sem ela, sei que dois meses parecerão de 2 anos. Estou muito arrependida, de verdade. E hoje tenho vergonha do que fiz.”

Taciana Pereira, 21 anos, mãe de J., nove meses
“Minha pena por tráfico é de nove anos. É a segunda vez que sou presa. Mas vou conseguir redução de pena. Nunca fui bandida. Comecei a sair de casa para me distrair porque não tinha paz com meus pais brigando. Fiz amigos que eram do crime. E o crime é gostoso. Te dá poder, vem o dinheiro, você começa a não precisar dar satisfação e nem pedir nada. Hoje, sei que era uma ilusão. Eu usei e vendi drogas, desde os 13 anos, mas meu forte era namorado bandido. Só que uma vez relacionada com um deles não dá mais para sair do esquema, ou perde a cabeça. É bom ser mulher do patrão da favela. Todo mundo te respeita. Eu soube que estava grávida de um mês já na cadeia pública (esse lugar foi desativado). Emagreci seis quilos porque quase não tinha comida e água. As presas eram ruins, violentas. Eu dormia com outras quatro detentas no chão, dividindo um colchonete. Fiquei lá um mês e já fui para o Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, que tem infraestrutura para receber gestantes. Cheguei aqui grávida de nove meses e minha filha foi a primeira a nascer no centro. Tenho conforto, podemos ser mães de verdade, cuidar dos nossos filhos, quase não vê a pena passar. Mas presídio é tudo igual. É 
privação da liberdade. E a criança também tem, logo que nasce, a privação dessa liberdade. É ruim saber que minha filha está nessa situação por minha culpa, mas também é bom acompanhar esse início do desenvolvimento dela. Toda hora penso no momento que ela for embora. Choro mesmo. Não existe se preparar para se separar de filho. Quero refazer minha vida com trabalho. Por isso, fiz todos os cursos que ofereceram aqui para aprender o máximo de coisas. Hoje, sei que aqueles amigos do passado não eram amigos de verdade. Preciso de uma mudança radical de vida. Não adianta dinheiro no bolso se não posso ir a lugar nenhum. Dinheiro não compra sofrimento. Minha filha é minha paixão. A única coisa boa que fiz até agora na vida.”

* Foram colocadas as iniciais das crianças para preservar a identidade delas


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