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ACABOU
A sequência de lesões extenuou o Fenômeno
e antecipou sua despedida do futebol
 

Na quarta-feira 9, Ronaldo Nazário, o Fenômeno, não estava relacionado para o jogo válido pelo Campeonato Paulista entre o Corinthians e o Ituano, por causa de uma lesão na coxa direita. Na tarde daquele dia, o atacante realizava exercícios no centro de treinamento do clube quando sentiu outra lesão na coxa, desta vez na esquerda. De volta para casa, o jogador que disputou quatro Copas e marcou mais de 450 gols resolveu pôr um ponto final no currículo. Havia sido vencido pelas dores. Anunciou o fato, oficialmente, cinco dias depois, na segunda-feira 14, em uma coletiva de imprensa diante de 300 pessoas. “Tenho tido nos últimos dois anos uma sequência muito grande de lesões que vão de uma perna a outra, de um músculo a outro. E essas dores fizeram eu antecipar o fim da minha carreira. Perdi para meu corpo”, decretou. Ao todo, Ronaldo relata ter passado por oito cirurgias que lhe custaram três anos e meio de afastamento dos gramados.

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Com 34 anos, 18 de futebol, Ronaldo, um fora de série também na arte de superar contusões (leia ao lado), sentia-se limitado, não só para o desempenho de sua profissão. “Eu sinto dores para subir uma escada – e não tenho elevador em casa”, revelou. A dor é o mecanismo de defesa que protege o organismo de passar dos limites em uma atividade física. Para atletas de alto rendimento, porém, ela é bem-vinda, um termômetro que indica o sucesso de um treinamento. A questão é saber respeitá-la. “Nós sempre exploramos o máximo, buscando o limite do nosso corpo. E isso não é saudável”, desabafou Ronaldo, já imaginando as consequências que terá de carregar para o resto da vida. Segundo o fisioterapeuta do esporte carioca Maurício Soares, dizer hoje que a carreira esportiva é sinônimo de saúde é ilusão. “Eles trabalham muito acima de suas capacidades fisiológicas, daí o motivo de conviverem com a dor do início ao fim da carreira”, afirma. O ortopedista Moisés Cohen, presidente da Sociedade Mundial de Cirurgia de Joelho e Traumatologia do Esporte, está prestes a concluir uma pesquisa feita com 100 ex-jogadores de futebol entre 30 e 50 anos. Ela irá mostrar que 80% deles apresentam artrose no joelho e no quadril. “Hoje, mais da metade dos atendimentos em consultório é decorrente de lesões de sobrecarga. Chega a ser epidêmico”, diz Cohen, chefe da medicina esportiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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Para o ortopedista, os atletas são vítimas de um sistema nada saudável e cada vez mais competitivo. Ele ressalta, porém, a falta de uma maior consciência entre os envolvidos no esporte, principalmente técnicos e os próprios atletas. A ex-jogadora de vôlei Ana Moser defende uma rotina de métodos de treinamento que conservem a saúde dos esportistas. “Infelizmente, na maioria dos casos, quem comanda não tem compromisso com o atleta, mas com o desempenho do atleta”, diz ela. Por outro lado, a ex-atacante assume sua parcela de culpa. “A gente vai até o fim, não desiste. Eu fui até o fim, até não conseguir dar um passo.” Única brasileira a constar na galeria dos maiores nomes de todos os tempos do vôlei feminino, Ana Moser foi medalha de bronze na Olimpíada de 1996 e encerrou a carreira três anos depois, aos 31 anos. Aos 42, admite que não consegue nem fazer corridas recreativas, apenas ginástica funcional, pilates e exercícios dentro da água para amenizar a dor espalhada pelos ombros, pelo pescoço e quadril.

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A ginasta Daiane dos Santos, 28 anos, com histórico de lesões nas canelas, joelhos e tornozelo, tem até um ranking próprio de dor. “Existe aquela controlável, com a qual você consegue competir; a absurda, mas que mesmo assim você consegue; e a excessiva, que te impede”, explica. A atleta, que pretende se aposentar após os Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, também fala do esgotamento mental. “Quando você vem de um nível frequente de lesões, isso te afeta psicologicamente. Cura na perna, aparece no braço. Cura no braço, aparece na coxa. Aí eu acho que é o corpo dando um sinal de que algo está errado”, afirma. Os momentos que antecederam a aposentadoria do Fenômeno mostram que ele não quis passar por outra recuperação. “Se a gente somar o número de horas que o Ronaldo passou fazendo fisioterapia é quase igual ao tempo que ele ficou em campo”, compara Katia Rubio, professora da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP). “No esporte, a dor responde por um processo quase darwiniano. Os que chegam ao patamar do alto rendimento são os que a suportam mais”, completa ela, psicóloga do esporte.

Fisiologista do Esporte Clube Pinheiros, Turíbio Leite de Barros Neto afirma que o atleta aprende a conviver com a dor por conta de um processo de adaptação dos receptores de sensibilidade. É submetendo o corpo a um mesmo desconforto várias vezes que pessoas como o Fenômeno toleram o incômodo. É como mergulhar o pé em uma bacia com água quente. Em um primeiro momento, você o retira rapidamente. Mas, ao repetir o movimento, vai se acostumando. “Mecanismos como esse tornam o receptor sensorial para a sensibilidade mais adaptável ao estímulo que causa o desconforto, a dor”, explica Neto, professor de medicina esportiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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É somente quando a intensidade da dor ultrapassa o limiar de adaptação a ela que o atleta joga a toalha. O tenista Gustavo Kuerten, que atingiu o status de ídolo da nação antes somente visto, fora do futebol, pelo piloto Ayrton Senna, terminou o ano de 2001 na vice-liderança do ranking mundial mesmo competindo com terríveis dores no quadril. Na temporada seguinte, ele encarou a primeira de duas cirurgias no local. Em 2008, aos 31 anos, o tricampeão de Roland Garros se deu por vencido após 13 anos em atividade. “Não é que eu não queira jogar mais… Desculpa, é que eu não consigo mais”, disse ele, aos prantos, em sua despedida das quadras, no Brasil Open, na Bahia. Três anos depois, Guga diz que um esportista de alto rendimento não é vencido pela dor, mas pelo déficit de performance provocado por uma lesão. “Eu tinha uma dificuldade muito maior em gerar um índice de eficiência no meu corpo e lidava com a dor tranquilamente”, analisa.

Admitir ter perdido para a dor que consumia seu corpo fez o Fenômeno se sentir “em uma UTI, em estado terminal”. “Foi como morrer pela primeira vez”, disse ele. Os atletas sentem-se dessa forma, explica Katia, porque sabem que se aposentar significa pôr fim à identidade de esportista e criar uma outra, que o fará conviver com o fato de ser mais um no meio da multidão. “É muito duro, de uma hora para a outra, se ver dessa forma. Por isso, eles retardam essa transição mesmo com dor”, diz a psicóloga do esporte. Ronaldo fez o contrário. Soube parar na hora que julgou adequada, mesmo sofrendo com a despedida. Afinal, mito é mito.