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DE BEM COM A VIDA
Volpe, na Praia dos Milionários, em São Vicente:

“Se a morte lhe sorrir, retribua”

Conheci Luiz Alberto Volpe numa escaldante tarde de segunda-feira na cidade de São Vicente, no litoral sul de São Paulo. Feitas as devidas apresentações na varanda de sua casa, ele foi à cozinha buscar-nos água e café. Eu permaneci na sala, surpreso e já lhe pressentindo o bom humor, com um vidro hermeticamente fechado que ele depositara em minhas mãos. Da cozinha vinha a sua voz:
– O que é isso que está dentro do vidro, mergulhado em álcool?
– Um osso da perna, respondi.
– Está indo bem.
– De que parte da perna?
– Joelho. É a rótula.
– Errou. Outra chance.
– Tornozelo.
– Errou de novo.
– Sei lá de onde é esse osso.
Volpe veio para a sala, seu andar dificultado pela descalcificação óssea e uma hérnia de abdômen, copos e xícaras nas mãos, um sorriso largo na boca. Logo ficou sério e na seriedade pareceu envelhecer. Ele explicou: “Esse osso é a cabeça do meu fêmur esquerdo que apodreceu e foi retirada cirurgicamente. Esse osso é a minha bandeira de luta atual. Tenho Aids há 22 anos, a ciência hoje conhece e controla o HIV, mas só agora começa a pesquisar a infinidade de doenças associadas a ele, inclusive as enfermidades ósseas que vêm ao longo do tempo. Eu me dedico a essas pesquisas.”

Volpe, um leonino de 49 anos nascido em São Vicente, parece que tem 30 quando canta com gostosa afinação baladas em inglês, quando tenta dançar com as pernas cambaias ou conta piadas das quais ele mesmo ri muito; perde essa juvenilidade e ganha ares sombrios, no entanto, quando se trata de falar, não da Aids que há mais de duas décadas se hospeda em seu corpo já marcado por 19 cirurgias, mas, isso sim, dos novos caminhos de pesquisa: “Temos base para afirmar que diversos cânceres também podem estar associados à Aids ou a efeitos adversos da medicação.” Aí ele sobe o tom e adverte: “Mas não é para ninguém parar de tomar o coquetel antirretroviral. Quanto antes tomá-lo é maior a chance de longa sobrevida, e aos poucos a medicina vai cuidando de tudo.” Fato é fato, e se Volpe adverte é para os soropositivos o acatarem porque ele ensina de cátedra: segundo infectologistas, ele é uma das “raras amostras vivas” da evolução do tratamento, e isso se deve à sua coragem de se apresentar como voluntário às terapias. Deve-se também à sua alegria, ao seu extremo alto-astral e à união que fez da fé com a ciência: “Vi muita gente morrer porque entregou tudo na mão de Deus, vi muita gente morrer porque só acreditava no remédio e não em Deus. Tem-se de juntar as duas pontas.” Contemporâneo do cantor e compositor Cazuza na descoberta de ser portador do HIV (Cazuza morreu em 1990), Volpe lembra como contraiu o vírus e o momento em que se deparou com a “demolidora expressão positivo” no exame laboratorial. “É aquela coisa. A relação de namoro, ainda que seja de risco, chega a um ponto em que um dos parceiros fala: vamos nos relacionar só um pouco sem camisinha. Foi nesse momento”, diz ele. No final de 1989 fez o teste e soube que a morte nele fizera morada.

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“Essa ursa de pelúcia me dá sorte. Eu a levo em todas as minhas internações”
Luiz Alberto Volpe 

Depressão? Não. Muita cocaína cheirada? Sim. “Se a morte lhe sorrir, seja educado e retribua o sorriso. Quanto à droga, eu a usava para curtir o que eu julgava ser o último momento de vida”, diz esse ex-bancário, aposentado por doença da Caixa Econômica Federal (recebe R$ 2,2 mil por mês). O primeiro da família a saber foi seu irmão, Paulo Roberto Volpe, e a confidência se deu entre lágrimas na praia. Na se­quência, em casa, a mesma casa onde 22 anos depois ele ainda vive, seus pais receberam a notícia. A mãe, Aida, chorou. O pai, Geraldo, apoiou o ombro no batente de uma das portas e fechou questão: “Vamos planejar como viver o maior tempo possível.”

Foi o que Volpe fez. Na época recomendava-se geleia, ele se entupiu de geleia. Depois, meses antes do anúncio oficial do coquetel, a ele já se submetia: “35 comprimidos ao dia, 1.050 ao mês” (hoje toma três dada a evolução da medicação e estabilização da carga viral). Mas não estacionou aí seu pioneirismo. Em decorrência do HIV, a distribuição de gordura é reordenada e o rosto fica “chupado”, enquanto o abdômen cresce. “Eu queria ficar bonito”, diz Volpe. Não adiantava o silicone porque ele adere justamente à gordura e gordura lá não havia. Como “cobaia”, submeteu-se a implantes de uma substância (politilmetachilato) que adere ao músculo. Tudo certo, “as bochechas voltaram”. Em meio a isso, vieram o suicídio do irmão, uma constelação de linfomas (medula, pescoço, pulmões, fígado, baço e virilhas), “apodrecimento dos ossos”, quase duas dezenas de cirurgias, candidíase que tomou todo o esôfago e o estômago (“fiquei verde por dentro), vieram quatro diagnósticos de paciente terminal. Numa ocasião, ele bateu boca com médicos e exigiu cirurgia de hemorroidas. Graças a essa operação descobriu um câncer no reto, operou e ficou bom: “Se eu não pensasse na minha sexualidade, talvez estivesse morto.”

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E vieram também as lutas ganhas na Justiça por remédios de graça, veio a fundação da ONG Hipupiara (monstro marinho imaginário morto em São Vicente no século XVI), vieram prêmios, reconhecimento internacional e formação de grupos inter-religiosos (de um deles participa o médico Anivaldo Padilha, pai do ministro da Saúde, Alexandre Padilha). Quando o irmão se matou, ele fez “um pacto com o HIV: espere meus pais morrerem para me matar porque eles não suportarão enterrar dois filhos”. O que falta vir, então, na sua vida, Volpe? A resposta é imediata: primeiro, Humprey Bogart sarar. Trata-se de seu poodle que pegou a “doença do carrapato”. Depois, “falta um namorado. Estou há cinco anos sem amor e há dois anos sem relação sexual. Namorei muito com Aids, sempre com camisinha. A sexualidade é a mãe da vida. A minha libido é a minha energia de viver”. 


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