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A PREDILETA
Mulheres iraquianas treinam com seus AK-47.
Há cerca de 100 milhões deles no mundo
 

Ela nasceu em 1947, mas ninguém diz que é uma sessentona. Pequena, quase delicada, considerada bonita e dona de uma anatomia soberba e sedutora, ao longo das décadas ela mudou pouco e segue fazendo basicamente o mesmo de sempre: matar. É considerada a arma mais devastadora do planeta e tem sua história contada agora no livro “AK-47 – A Arma que Transformou a Guerra”, escrita pelo americano Larry Kahaner. Biografias de modelos vintage de carros, como a Ferrari e o Porsche, ou de guitarras cobiçadas, a exemplo da Fender Stratocaster e da Les Paul, já existem há tempo. Mas a de um fuzil é algo raro e se justifica pela importância que o AK-47 adquiriu na sucessão de conflitos bélicos em que foi protagonista. Essa arma tem sido responsável por mais de 250 mil mortes por ano em todo o mundo e, de sua invenção até agora, já alcançou cerca de 100 milhões de undades. O nome deriva de “Automática Kalashnikov”, referência ao pai da criatura, o russo Mikhail Timofeevich Kalashnikov – um jovem soldado que, ferido por nazistas, esboçou o AK-47 no leito de um hospital. Sua obsessão, durante a convalescença, era criar um fuzil que ajudasse o então Exército soviético a derrotar os alemães rapidamente. Era preciso que ele fosse fácil de manusear e carregar, além de resistente e com alto poder de fogo. O sr. K alcançou todos os objetivos.

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“Hoje em dia, em áreas de instabilidade, possuir um AK
é símbolo de virilidade, um rito de passagem”

Larry Kahaner, autor do livro

A Kalashnikov é uma arma pequena e simples que tem um pente de balas na forma de banana, capaz de disparar 600 tiros por minuto. Sobre sua resistência, soldados americanos que estiveram no Vietnã disseram: “AKs enterradas em áreas de cultivo de arroz por muitos meses, ao serem desenterradas imundas e enferrujadas, disparavam perfeitamente, bastando dar um tranco no ferrolho de ação com o calcanhar da bota.” Não só Exércitos a adotaram: ela também é a preferida de traficantes e terroristas. Em quase todas as fotos conhecidas de Osama Bin Laden, um AK o acompanha. Segundo o autor do livro, ele e seu grupo, a Al-Qaeda, “consideram essa arma a mais importante dos terroristas.”

Um dos motivos seria o fato de ser leve e, portanto, possível de ser usado por crianças ou pré-adolescentes aliciados por rebeldes no Congo, Mianmar, Sri Lanka e Afeganistão, para citar apenas alguns poucos palcos de batalhas sangrentas. Os Exércitos rebeldes descobriram logo sua praticidade e que era preciso menos de uma hora de treinamento para sua boa manipulação, o que o tornava perfeitamente adequado para braços e corpos pequenos – as crianças-soldados, mão de obra barata para matar e morrer. O livro cita o caso do mariner Natham Ross Chapman, o primeiro soldado americano a perder a vida pelo fogo hostil no Afeganistão: quem o matou foi um menino de 14 anos armado com um AK. O que torna esse fuzil tão onipresente é também o seu baixo custo. Em qualquer disputa territorial ou de poder são despejados muitos deles para “liquidar a fatura”, como se deu em Ruanda, cujo genocídio ocorrido em 1994 tinha a assinatura do AK.

“No Iraque, rebeldes infligiram baixas
desmoralizantes às tropas dos EUA, aplicando táticas
simples como bombardeio, sequestro e disparos maciços
com armas pequenas como a Kalashnikov”

Larry Kahaner, autor do livro

Um de seus maiores rivais é o fuzil M16, mas, segundo Kahaner, “essa disputa nunca será decidida.” A fama de “arma dos oprimidos” – nascida nos arrozais da Guerra do Vietnã – espalhou pelo mundo uma imagem incomparável de sinistro glamour e prestígio. À distância, seu criador não recebe royalties pela invenção e hoje, aos 86 anos, vive de forma modesta na Rússia, quase totalmente surdo, entre orgulhoso da filha lendária e constrangido por seu sobrenome ser a assinatura de milhões de mortes em guerras e conflitos. AKs são considerados “o combustível que mantém prolongadas ‘pequenas guerras’ na Ásia, África, América do Sul e Oriente Médio”, como disse o autor da obra. Kalashnikov não aceitou dar entrevista para o livro e é chamado por Kahaner de “personalidade compassiva e trágica.” Uma das frases que ele mais repete na velhice resume o quanto é assombrado pelo terrível presente que deu ao mundo: “Eu gostaria de ter inventado um cortador de grama.” Mas agora é tarde.
 

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O repórter André Julião conversou com o autor do livro. Leia a conversa a seguir.

O jornalista Larry Kahaner cita em seu livro “AK-47 – A arma que transformou a guerra”, um trecho do bestseller “Steel My Soldier’s Heart”, do coronel americano David H. Hackworth, que lutou na Guerra do Vietnã. É uma amostra clara do porque da arma, projetada por um russo leigo em engenharia, se tornou a mais eficiente arma de matar da história.

Hackworth conta que, durante a construção de uma base, encontraram  um soldado vietcongue morto com seu AK. O militar tirou a arma da lama, puxou o ferrolho para trás e disse: “Vejam isso. Eu vou mostrar para vocês como uma verdadeira arma de infantaria funciona”. Na sequência, disparou 30 tiros, como se a arma tivesse acabado de ser limpa – e não enterrada há um ano.

“Este é o tipo de arma que nossos soldados necessitavam e mereciam, não o M-16 que tinha que ser limpo em um hospital ou então ele emperraria”, escreveu o coronel. O episódio demonstra um dos segredos do rifle automático que se espalhou pelo mundo. Os outros, Kahaner conta nessa entrevista.

ISTOÉ – Qual a principal razão para o AK-47 ter sido tão bem sucedido?

Larry Kahaner – O AK é uma arma muito simples, fácil de consertar e de usar. Ele raramente emperra e é imune a clima, poeira e água. Você não precisa ser um atirador para usá-lo. Mas o mais importante é que ele é barato e quase indestrutível.

ISTOÉ – Mesmo hoje em dia, porque o tipo de rifle que a tropa usa é mais crítico em uma guerra do que alta tecnologia?

Kahaner –  Numa última análise, guerra diz respeito a tirar o último homem do seu território. Apesar das grandes bombas, o combate sempre acaba no confronto frente a frente, especialmente nas batalhas de guerrilha (em espaços pequenos como cidades).

ISTOÉ – O senhor conta no livro que, apesar dos americanos terem visto e analisado o AK-47, eles ignoraram sua engenhosidade. Por que isso aconteceu?

Kahaner – Como a arma era rude, os americanos a consideraram sem importância. Os EUA estavam mais interessados em armas de alta tecnologia como a bomba atômica.

ISTOÉ – Como a relação entre a Fábrica de Armas Springfield (que começou a fabricar armas militares em 1794) e o governo americano influenciaram para que as nações da Otan (Organição do Tratado do Atlântico Norte) não usasse o AK ou uma arma similar?

Kahaner – A Fábrica de Armas Springfield era a fabricante de armas pequenas dos EUA e tinha feito o rifle M-14 para o exército. Apesar de ser uma arma inferior, tinha muitos defensores no governo. Quando veio a M-16, de uma fabricante de fora, a Springfield brigou e venceu contra isso por um longo tempo, até que não teve mais como brigar contra o M-16. O atraso pôs os EUA atrás dos soviéticos na fabricação de armas pequenas. Agora que o AK é um símbolo das nações anti-ocidentais, não pode mais ser adotado pelas forças da Otan.

ISTOÉ – A União Soviética distribuiu o AK – ou o modo de fazê-lo – para todos os países que apoiaram o comunismo. Nessa perspectiva, o comunismo foi “bem sucedido”?

Kahaner – O comunismo não deu certo, definitivamente, mas o AK foi e continua sendo a arma pequena mais bem sucedida no mundo.

ISTOÉ – Mikhail Kalashnikov não era um especialista em armas. O que o fez diferente de outros projetistas?

Kahaner – O fato de Kalashnikov não ser um expert permitiu que ele construísse uma arma que não tivesse uma super engenharia ou um desenho elegante –  o que os verdadeiros fabricantes de arma procuram. Não ser um profissional foi seu grande trunfo, pois ele queria apenas construir uma arma simples, que funcionasse o tempo todo, apesar do visual primitivo.
 
ISTOÉ – O senhor já teve um AK-47 em mãos? Como se sentiu?

Kahaner – Atirei com várias AKs e as achei eficientes, mas sem nenhuma precisão.

 

Leia um trecho do livro:

Introdução

Em 23 de março de 2003, sob a proteção da escuridão, 32 helicópteros de combate Apache do exército dos EUA voavam para Bagdá na frente das forças de coalizão, seguindo na direção norte e sobrevoando a parte terrestre em direção à cidade-capital. Os helicópteros estavam em missão de busca e destruição para encontrar a guarda republicana de Saddam Hussein que supostamente formava um semicírculo para proteger a parte sul da cidade.
Na preparação para essa missão, as principais posições de artilharia de Saddam tinham sido golpeadas por mísseis terra a terra e foguetes ATACMS carregando 950 bombas de 225 gramas. As forças remanescentes do inimigo seriam então varridas por estas máquinas de 22 milhões de dólares que voavam baixo, equipadas com canhões de 30mm e os mais avançados sistemas de radar Longbow, capazes de direcionar mísseis antitanques Hellfire para alvos múltiplos.
No entanto, quando os Apaches estavam em posição, algo inesperado aconteceu. As luzes nas cercanias de Bagdá se apagaram, como se tivesse ocorrido um blackout. Então, do mesmo modo misterioso, elas voltaram a acender dois minutos depois.
Os pilotos do exército dos EUA não perceberam que aquele era um sinal de ataque.