Dona Maria das Graças Martins, 63 anos, nunca viu tanto burburinho nas proximidades do barraco de madeira onde reside, no alto do Morro Dona Marta, em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro. Normalmente pouco frequentado, o lugar tornou-se movimentado desde o início da obra que tem alimentado uma das maiores polêmicas atuais. A 100 metros de sua residência está sendo erguido o muro com o qual o governador Sérgio Cabral (PMDB) pretende conter a expansão das favelas fluminenses. "Acho que pode dar certo", opina ela, com a experiência de quem mora há 55 anos no Dona Marta. "Se tivesse um muro na época, talvez eu mesma não tivesse construído meu barraco, e outros também." Naquele local começa a empreitada que deverá terminar com o levantamento de 11 quilômetros de barreiras de concreto em 11 comunidades.

As primeiras a receberem a obra são o Dona Marta (com extensão de 634 metros) e a Rocinha (com pouco mais de 2,5 quilômetros). Somente nestes dois locais o projeto está orçado em cerca de R$ 22 milhões.

TABU Desde os anos 1980, "remoção" é palavra proibida no vocabulário dos políticos em nome da popularidade

"O custo se justifica plenamente", defende Ícaro Moreno Junior, presidente da Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop), encarregada de realizar a tarefa. "Se essa providência tivesse sido tomada há dez anos, o problema não teria chegado a essas dimensões."

No Dona Marta, os operários instalaram máquinas para fabricar diariamente 500 blocos de concreto de 40 centímetros, que são enfileirados rapidamente. A pressa é explicada pela dimensão da ameaça ecológica. "Não estamos falando de um muro que vai tirar a liberdade das pessoas ou separar a favela da cidade, mas de uma construção para preservar o meio ambiente", afirma o presidente do Movimento Popular de Favelas, William de Oliveira, morador da Rocinha. "Muitas vezes, as pessoas constroem em uma área de risco e é preciso uma contenção para que isso não aconteça", defende.

O descontrole sobre as construções irregulares tem explicação histórica. Desde os anos 1980, quando o governador Leonel Brizola chegou ao poder no Estado, a palavra "remoção" foi excluída do vocabulário político carioca em nome da popularidade nas urnas. Brizola conteve a truculência policial nos morros, mas incentivou a multiplicação de barracos, inclusive com a concessão de lotes em várias regiões do Estado. Seus sucessores assistiram passivos ao crescimento desordenado da favelização da cidade.

No entanto, as pesquisas sobre a eficácia do muro têm mostrado que a presença do Estado na solução do problema pode receber mais apoio do que a simples passividade populista do passado. Uma consulta realizada pelo Datafolha nos dias 8 e 9 de abril revela que 67% dos entrevistados acreditam que os muros irão conter a expansão de moradias irregulares sobre o que resta de floresta. "O objetivo é restabelecer a ordem urbana e impedir que a mata continue a ser devastada", disse o governador. Sem dúvida, o muro é uma barreira à devastação e um limite à expansão das favelas. Mas também deve facilitar o combate à criminalidade. Num primeiro momento, restringe os movimentos de traficantes, especialmente as rotas de fuga para a mata fechada. Depois, virá acompanhado de uma ação estatal que pretende conhecer melhor os moradores. Ninguém terá questionado o direito de ir-e-vir, mas a polícia pretende montar postos nas entradas das favelas.

Apesar de reações contrárias de algumas lideranças, as pesquisas de opinião mostram que as comunidades aprovam os muros. O dado mais curioso da pesquisa do Datafolha é que a população mais pobre, que vive o problema na pele, é a mais favorável à medida. Entre os entrevistados com renda familiar mensal de até dois salários mínimos, 51% são a favor do muro e 39% o rejeitam. Na parcela da população com rendimento acima de dez salários mínimos, 50% são contra os muros e 45% são a favor. Ou seja, quanto menor a renda e a escolaridade, maior a aprovação.

O ambientalista Mauricio Ruiz, secretário executivo do Instituto Terra de Preservação Ambiental, defende as barreiras de concreto para separar a favela da floresta, protegida pela legislação. "Não é simples conter a expansão de uma comunidade", diz. "O muro é uma demarcação que permite um monitoramento constante." O sociólogo Ignácio Cano, da Universidade do Rio de Janeiro (Uerj), alerta que o combate à devastação nos morros depende de outras medidas, além de demarcações ostensivas. "Se não houver fiscalização, nada disso adianta", afirma. O prefeito Eduardo Paes (PMDB), aliado de Cabral, chegou a se manifestar contra a construção do muro, anos atrás, e agora mudou de opinião. "Como secretário de Meio Ambiente, lancei em 2001 os ecolimites, que não eram marcos físicos bem definidos e ninguém respeitou", diz Paes. "Hoje, apoio o muro."

O muro pode representar uma garantia de propriedade para a quase totalidade dos moradores das favelas. "Podemos dizer que 99% das favelas da cidade estão estabelecidas e não se discute a remoção nesses lugares", diz o prefeito Eduardo Paes. "Mas discutir a remoção em pontos específicos não pode ser um tabu." O governador Cabral detalha essa possível mudança.

"A única providência é a realocação de alguns moradores que estão em áreas de risco para outros locais na própria comunidade", diz.

Até a década de 1960, existia na Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos cartões-postais da cidade, a favela da Catacumba, com 13 mil moradores. Os barracos foram removidos pelo governador Negrão de Lima (1965-1971) em uma operação considerada modelo pelos urbanistas. Caso a ação não tivesse sido feita, segundo o engenheiro Francisco Filardi, a expansão da favela faria da Catacumba uma Rocinha e a cidade teria perdido uma de suas mais belas paisagens.

O apoio ao projeto do muro sinaliza que a classe média da zona sul deseja inverter um processo de favelização que chegou ao asfalto. "Hoje, 60% das moradias do Rio de Janeiro são irregulares, não apenas em favelas", diz a vereadora Aspásia Camargo (PV), que preside a CPI da Desordem Urbana. "Os bairros legais estão sendo engolidos pela favelização." Isso se deve à pressão populacional e à ausência do poder público.

Mas a desordem urbana não é exclusividade da favela. Ela também chega ao asfalto e vai além da moradia.

Da zona sul à zona norte, as ruas são tomadas por carros estacionados sobre as calçadas, vendedores ambulantes e comerciantes obstruem a passagem, flanelinhas praticam livre extorsão contra motoristas. A situação chegou a tal ponto que foi preciso criar, no município, uma Secretaria de Ordem Urbana.

Durante décadas, o número de favelas cresceu de forma exponencial. De acordo com o Instituto Pereira Passos, vinculado à prefeitura e responsável pelos estudos urbanísticos da cidade, atualmente existem 968 favelas no Rio de Janeiro. A estimativa é de que, se nada fosse feito, logo a cidade emplacaria a marca de mil favelas. Em 2008, fotos de satélite identificaram a formação de 50 novas manchas nos morros que podem vir a ser o início de novas favelas. A construção de muros é a tentativa de mudar esta realidade e emprestar alguma ordem ao caos. Com a contenção das favelas em limites definidos, o poder público vai ter condições de promover uma urbanização ordenada. Pode-se universalizar o saneamento básico, combater construções em áreas de risco, regularizar a distribuição de energia elétrica, melhorar o acesso, disciplinar o comércio e até legalizar as propriedades.

Pesqui sa Datafolha mostra que quanto menor a renda mensal e a escolaridade, maior a aprovação: quem vive o problema na pele apoia o muro

Sem o muro, cada melhoria urbanística seria como no passado: um estímulo para que a favela avançasse mata adentro, a partir de novas ocupações. Para quem teme uma cisão no Rio, a história mostra que partida a cidade está há décadas. O que o muro promete trazer de bom é justamente o contrário: a definição de um contorno que permita integrar o morro e seus moradores a um projeto urbano que atenda a todos os cariocas.
Colaboraram: Adriana Prado e Francisco Alves Filho