Assista ao trailer :

DiscursoRei_site.jpg

 

 

 

chamada.jpg
VOLUME MÁXIMO
Colin Firth como George VI: tropeços em palavras com k
 

Em uma das ótimas passagens do filme “O Discurso do Rei”, que estreia na sexta-feira 11 embalado por uma dúzia de indicações ao Oscar, o monarca inglês George VI está na sala de projeções do Palácio de Buckingham com a sua mulher, a rainha Elizabeth (que mais tarde ficaria conhecida como rainha-mãe), e as filhas Elizabeth (hoje a rainha Elizabeth II) e Margaret. Ao aparecer na tela a imagem do ditador alemão Adolf Hitler numa fala inflamada ao povo germânico, uma das meninas perguntou ao pai: “O que ele está dizendo?” George VI respondeu: “Não sei. Mas é algo muito bem dito”. A ironia, tipicamente britânica, esconde um duplo sentido. O primeiro, mais cínico, diz respeito à postura da Inglaterra em relação ao avanço nazista, ao se mostrar indecisa até a invasão da Polônia. O outro sentido, que traduz o lado humano dos poderosos, é uma espécie de mea-culpa. George VI (Colin Firth) era um rei gago e, por isso, demonstra a sua admiração pela desenvoltura com que Hitler pronuncia os “erres” que marcam o seu idioma. Não que o monarca se embananasse com esses fonemas, pois sua maior dificuldade se dava com as palavras iniciadas pela letra “k”, e a mais famosa delas justamente “king” (rei).

O príncipe Albert (esse era o seu primeiro nome) chegou ao trono porque seu irmão mais velho, Edward VIII, decidiu se casar com a avançada socialite americana Wallis Simpson, divorciada duas vezes e dona de espírito livre suficiente para sobreviver aos escândalos que marcariam daí para a frente a linhagem real. Nada, contudo, era mais constrangedor do que se ouvir as mensagens oficiais do soberano recém-empossado – sua oratória truncada era sempre recebida com um silêncio incômodo. Na Inglaterra da época, a gagueira de um nobre era vista como uma falha de caráter. Além dessa pecha, passou a ser também um “defeito técnico” no grande show da nova política espetacularizada. A era do rádio mudou a face do discurso público e dispensou a cerimônia ao ar livre para se fazer ouvir por cada cidadão, àquela altura acuado em casa pelo medo da guerra. Pior para George VI, que, de consultório em consultório, só conseguiu sucesso na melhor emissão das palavras ao procurar os serviços de um ator fracassado, mas profundo conhecedor do aparelho respiratório e da fala, Lionel Logue (Geoffrey Rush). Detalhe: ele era australiano, ou seja, cidadão de uma ex-colônia, o que tornou a relação terapeuta-paciente ainda mais problemática, especialmente por que Logue insistia em chamar o rei pelo seu apelido de família – Bertie.

Trata-se, como se vê, de uma relação muito bem temperada pela gravidade histórica e pela leveza dos detalhes anedóticos para ser vista como totalmente verdadeira. Mas, feitas algumas ressalvas às inevitáveis liberdades ficcionais, é mesmo verídica. O diretor Tom Hooper, que também foi gago e por isso decidiu estudar a vida de George VI, declarou que os melhores diálogos do filme não foram escritos pelo roteirista, mas tirados diretamente do diário de Logue, revelados há apenas cinco anos pelo neto do fonoaudiólogo autodidata. Hooper começou a reconstituir o relacionamento entre o monarca e seu professor de voz nos anos 1980 e procurou de imediato o filho de Logue. Mas ele disse que só contribuiria com a obra, originalmente pensada para o teatro, se a rainha-mãe, ainda viva, permitisse que a história viesse à luz. Consultada pelo cineasta, Elizabeth declarou: “Autorizo, mas só depois de minha morte. A lembrança desses fatos ainda é muito dolorosa.” Bem, como se sabe, a rainha-mãe viveu 101 anos, só vindo a falecer em 2002. Nesse período, quem também morreu foi o filho de Logue – Hooper teve então que ir atrás do neto, que estava ciente do tesouro guardado. Tanto é assim que acaba de lançar o livro “O Discurso do Rei: Como um Homem Salvou a Monarquia Inglesa”.

Entre as passagens consideradas imprecisas está o assentimento do primeiro-ministro Winston Churhill à abdicação ao trono de Edward VIII – na verdade, ele preferia o governo anterior. Outra passagem inverídica é a direta participação de Logue no famoso discurso de George VI anunciando a entrada da Inglaterra na guerra, em 1939. Foi provado que o rei já conseguia declamar longas sentenças nessa época. Uma coisa, porem, é verdade: o monarca tropeçou de propósito em algumas palavras para deixar o pronunciamento, ponto alto do filme, mais autêntico. “Se falasse com perfeição o povo poderia não acreditar que era eu” , afirmou. George VI pode não ter feito um grande governo. Mas, com certeza, demonstrou que na era midiática que se anunciava o político passou a ser, antes de tudo, um ator.

img.jpg