No imaginário popular, Isadora Duncan (1877-1927), a precursora da dança moderna, costuma ser associada a dois instantâneos. Um deles é uma foto que a mostra descalça, vestindo uma túnica grega. O outro remete à sua morte trágica, com o pescoço partido por uma echarpe de seda presa na roda de um conversível dirigido por um homem que mal conhecia. Aliás, não era uma echarpe e sim um xale de crepe pesado, com dois metros de comprimento, dado de presente por uma amiga. De personalidade controversa, a talentosa Isadora viveu com intensidade singular. Numa época em que as viagens eram caras e demoradas, ela cruzava o mundo sem parcimônia, arregimentando admiradores incondicionais e críticos irascíveis. Durante sua espetacular carreira, ganhou e dilapidou fortunas e movimentou-se como um pêndulo entre períodos de glória e de intensa dor.
Com tal currículo, a revolucionária dançarina só poderia ter sido alvo de várias biografias. Mas nenhuma teve a profundidade atingida por Isadora – uma vida sensacional (Editora Globo, 624 págs., R$ 76), do escritor americano Peter Kurth.

Americana de São Francisco, Isadora Duncan não recebeu educação formal. No entanto, com apenas 11 anos começou a ensinar dança. Adolescente, se apresentava acompanhada dos três irmãos ao som do piano da mãe, Mary Dora.
Em sintonia com a família, criou o próprio sistema de dança, que privilegiava os movimentos livres, motivados pela emoção. “Tive três grandes mestres, os três grandes precursores da dança no nosso século: Beethoven, Nietzsche e Wagner”, costumava dizer, citando o filósofo Friedrich Nietzsche entre os grandes compositores alemães.

Em busca de reconhecimento, aos 18 anos trocou São Francisco por Chicago. Passou por Nova York e Londres, mas a fama só chegaria cinco anos depois, em Paris e Berlim. Rodeada de seguidores e amiga dos gênios de seu tempo, como o escultor francês Auguste Rodin, Isadora aprimorou sua dança à perfeição e acabou por influenciar gerações. Nos costumes, provocou a ira conservadora de muitos, em especial pela sua coleção de amantes, entre eles o produtor teatral Gordon Graig, pai da filha Deirdre, e o milionário Paris Singer, pai de Patrick.

Seus dois filhos também tiveram fim trágico num acidente ocorrido em abril de 1913. O carro que os conduzia parou e o motorista saiu para girar a manivela que dava partida, acreditando ter puxado o freio. Quando o motor voltou a funcionar, o automóvel mergulhou no rio Sena, afogando as crianças e a babá. Isadora nunca mais foi a mesma. “Os deuses vendem caro suas dádivas”, registrou ela tempos depois. “A cada alegria corresponde um tormento. Para o que dão de fama, riqueza, amor, eles extraem sangue e lágrimas e dor dilacerante.”

Peter Kurth conseguiu, após dez anos de pesquisa, retratar as dualidades do mito Isadora Duncan, sem poupá-la sequer do período de decadência que culminou com seu fim tragicamente descrito no livro. “A força da roda quando o xale se enrolou nela puxou Isadora para fora do carro, atirando-a na rua… e prendendo sua cabeça entre o corpo e o pneu – foi uma morte rápida, mas não tão limpa quanto normalmente é imaginada e descrita… Ela foi arrastada cerca de 20 a 30 metros.” Kurth também revela em detalhes a passagem pela União Soviética, o flerte com o comunismo e o tumultuado casamento com o poeta russo Serguei Iessiênin, que resultou numa união tão profícua e tumultuada quanto a vida da bailarina.