Espécie de Chacrinha político americano, Michael Moore, 50 anos, continua balan-
çando a pança, buzinando os poderosos e dando ordens no terreiro partidário dos Estados Unidos. Autor dos best sellers Stupid white men – uma nação de idiotas e Cara, cadê meu país, ambos lançados no Brasil pela W11 Editores, e diretor do documentário Tiros em Columbine, vencedor do Oscar 2003, Moore vem
agora com seu mais recente agit-prop cinematográfico: Fahrenheit 11 de setembro (Estados Unidos, 2004), que estréia em circuito nacional no dia 30. “Minha intenção é tirar George W. Bush da Casa Branca. Não tenho nenhum pacto com os liberais americanos. Eles ficaram quietos, assim como a imprensa do país, durante
todo o tempo desta ditadura Bush. Nos traíram e nos deixaram sozinhos. Estava mais do que na hora de alguém gritar contra isso”, disse Michael Moore a ISTOÉ, na semana passada.

Com idéia fixa na cabeça, uma câmera na mão e muita raiva no coração, o diretor teve sua obra consagrada em todo o território americano – inclusive nos redutos mais republicanos –, amealhando até o momento US$ 80 milhões nos Estados Unidos. Na Inglaterra, terra de Tony Blair, outro que enxergou pêlo nos ovos de ouro do Iraque, o documentário acaba de estrear em 132 salas, fazendo no primeiro fim de semana US$ 2,4 milhões, maior abertura para um documentário naquele país. A carreira de Fahrenheit 11 de setembro já nasceu vitoriosa. Primeiro, ganhou a prestigiada Palma de Ouro no Festival Internacional do Filme de Cannes de 2004. Depois, aterrissou nas salas americanas de cinema distribuído pela empresa canadense Lions Gate, já que os estúdios Disney, proprietários da empresa Miramax, produtora do filme, recusaram-se a distribuí-lo.

Moore confessa o que parece óbvio: Fahrenheit 11 de setembro é uma obra panfletária. Mas num país onde radicalismos de idéias e movimentos vociferantes até hoje faziam parte exclusivamente dos arsenais da direita, o conceito de que a esquerda possa usar as mesmas armas tem causado frisson, choro e rangeres de dentes. A acusação mais frequente é de que o documentário manda às favas os fatos em favor do ódio a George W. Bush. “Eu contratei um verificador de fatos – ex-colaborador da revista New Yorker – para checar todas as informações. Temos pensado em estabelecer um prêmio de US$ 10 mil para quem achar uma única inverdade”, afirma Moore. Várias publicações, e principalmente os radialistas conservadores, pularam sobre este desafio e exigem a recompensa. Os resultados desta inquisição, caso levada a extremo, são no mínimo dúbios. Mas como exigir tal rigor de um panfleto político?

Imprensa – O analista de ética jornalística Adam Greenhorne acredita que nem mesmo a imprensa, que se julga imparcial e pretende apenas imprimir fatos comprovados, conseguirá cumprir esta tarefa. “Veja as gafes do The New York Times com as histórias inventadas por seus repórteres, inclusive nas matérias sobre a ameaça de Saddam Hussein e seu estoque de armas de destruição em massa.” Na conversa com ISTOÉ, Michael Moore esbraveja ainda mais. “É engraçado que ninguém fica checando o que os radialistas da direita e os âncoras das emissoras Fox, apologistas de W. Bush, vomitam a toda hora nos ouvidos do povo americano. As mentiras são repetidas à exaustão, na esperança de que se tornem verdade. Meu filme mostra fatos comprovados e há todo um movimento para desacreditá-lo. Mas o público que o assiste sai do cinema convencido de que falo a verdade e de que nosso país está nas mãos de gente terrível. As imagens não mentem.”

Realmente, as imagens são devastadoras. Numa delas, o deputado democrata por Michigan, John Conyers, aparece dizendo que os congressistas não lêem todas as leis que aprovam. E mais: a afirmação é feita num contexto em que Moore procura entender como se conseguiu a aprovação do famigerado Ato Patriótico, que dá poderes extraordinários ao Executivo e seus ramos de segurança para agir contra o terrorismo. Na verdade, o calhamaço de medidas autoritárias foi produzido da noite para o dia, recebeu os jamegões de congressistas e cortou uma série de direitos legais até então garantidos pela Constituição aos cidadãos americanos. Para ensinar aos políticos o conteúdo daquilo que está escrito no documento, Moore alugou um caminhão sorveteiro com alto-falante e passou a ler os parágrafos intransigentes na porta do Capitólio, o prédio do Congresso.

Guerra – É nas escadas do mesmo edifício que o cineasta – numa de suas típicas presenças em cena – tenta convencer os congressistas a assinar o alistamento de seus filhos para servirem no Iraque. Descobre-se que apenas um dos que votaram a favor da guerra tem filho nos campos de batalha iraquianos. O barulho sobrou até para o senador John Kerry – virtual candidato democrata à Presidência, que votou pela guerra – ao ser confrontado pelo cineasta. Assim como fez em seu primeiro documentário, Roger and me – no qual ele questiona o fechamento de uma fábrica da General Motors –, Moore encurrala suas presas, tira facilmente suas máscaras e aponta as contradições de cada uma. Nas obras anteriores ele já lapidava seu estilo iconoclasta, constrangendo executivos de grandes corporações, como a Nike em filme dedicado exclusivamente à ética de trabalho nesta empresa.

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A presença rotunda e escrachada do diretor enche a tela. Em Fahrenheit 11 de setembro, uma colcha de retalhos de imagens faz o papel principal. Ela cobre desde as dramáticas cenas de combates no Iraque até Lila Upscomb, mãe de um soldado americano morto naquele país e moradora da cidade de Flint, em Michigan, onde Moore se criou. Acrescenta-se, é claro, a onipresença de George W. Bush, que, de acordo com o filme, é o presidente que mais tirou férias na história dos Estados Unidos. O político também é acusado de roubar as eleições com a ajuda da Suprema Corte americana; de manter ligações familiares de negócios com a realeza da Arábia Saudita; e de usar as guerras no Afeganistão e Iraque como prospecção de petróleo, entre outras incriminações.

É fácil, então, imaginar o que o documentário de Moore prega aos já conver-
tidos. Mas as pesquisas feitas às portas de cinemas mostram que ele ganha aplausos de eleitores indecisos e atenções até de republicanos. “Eu recebi
cartas de uma porção de soldados que viram o filme e me congratularam. O
serviço de entretenimento do Exército e a Força Aérea dos Estados Unidos tam-
bém contataram a distribuidora Lions Gate, e isto está documentado, para pro-gramar o filme nas diversas bases espalhadas pelo mundo. Foram os soldados
que votaram em Fahrenheit 11 de setembro e querem assisti-lo”, enfatiza Moore.
Os cofres democratas também demonstram que a tour de force do diretor está valendo a pena. Só nos dois primeiros dias de exibição do filme, o comitê de campanha de John Kerry recebeu doações de US$ 5 milhões. Nem todos, contudo, ovacionam a obra. Além dos fiéis eleitores de Bush, parte da imprensa disparou
seu contra-ataque. O crítico Andrew Sullivan, da revista Time, por exemplo, com-
parou Fahrenheit 11 de setembro ao não menos polêmico Paixão de Cristo, de Mel Gibson. Só que no documentário de Michael Moore os crucificados são os bandidos e quem maneja a chibata é o mocinho.


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