Para qualquer brasileiro que desembarque pela primeira vez em Porto Príncipe, a capital do Haiti, é inevitável a lembrança do refrão da música Haiti, de Caetano Veloso e Gilberto Gil: “O Haiti é aqui/O Haiti não é aqui.” Mas à medida que se caminha pelas ruas da cidade, depara-se com uma paisagem tão desgraçadamente tenebrosa que logo vem a certeza de que só a segunda parte do verso é verdadeira: nem a pior favela brasileira, nem mesmo Alagados, na periferia de Salvador, chega aos pés de Porto Príncipe em matéria de degradação e miséria. A capital haitiana é uma verdadeira sucursal do inferno: em meio a um calor de quase 40ºC e a um odor de lixo insuportável, os haitianos movimentam-se como espectros maltrapilhos e sujos. Não há água encanada nem esgoto para cerca de 90% da população, o que faz de Porto Príncipe uma verdadeira cloaca a céu aberto. Por inúmeras ruelas esburacadas e poeirentas, avistam-se centenas de jovens e velhos desocupados – a taxa de desemprego é de nada menos que 80% da força de trabalho. Mulheres esqueléticas carregam crianças no colo e levam na cabeça latas d’água captada nos infectos riachos que cortam a cidade. Velhas picapes transformadas em coletivos (conhecidos como “tap-tap”) cruzam as ruas da cidade transportando dez pessoas, em média, galinhas e perus e exibindo mensagens tão improváveis que, para nós, soam irônicas: A grandeza de Deus, Obrigado Jesus; outras parecem descer ao nível do sarcasmo: Apocalipse ou Mico Express. O choque de realidade atinge seu ápice numa feira no bairro de Bel Air, nas proximidades do porto, onde as pessoas vendem e compram frutas, legumes, verduras, roupas e quinquilharias em meio a toneladas de detritos acumulados, num clima de aparente normalidade que deixa perplexo o estrangeiro incauto.

Não bastasse tanta miséria e desolação, este país está conflagrado por um clima de insurreição que levou, em 29 de fevereiro deste ano, à deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide, um ex-padre católico esquerdista que já tinha sido deposto por um golpe militar em 1991, voltou ao poder em 2000 e agora, acusado de corrupção e de usar grupos paramilitares para aterrorizar seus opositores, renunciou sob intensa pressão interna, dos EUA e da França. Para estabilizar o país, controlar a ação de paramilitares e gangues e garantir a realização de eleições gerais no próximo ano, a ONU criou uma força de paz, a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah), liderada pelo Brasil e comandada pelo general-de-divisão Augusto Heleno Ribeiro Pereira. Autorizada a contar com um efetivo total de 6.700 homens, essa força ainda está em processo de formação, com menos de dois mil soldados, 1.200 dos quais são brasileiros – 948 do Exército, 251 da Marinha (fuzileiros navais) e um oficial da Aeronáutica. Efetivos do Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai, Nepal e Sri Lanka completarão a Minustah. Na semana passada, a reportagem de ISTOÉ integrou a comitiva do ministro da Defesa, José Viegas Filho, que realizou a primeira visita ao Haiti, acompanhado pelos ministros da Defesa do Chile (Michelli Bachelet Jeria) e do Uruguai (Yamandú Fau), pelo secretário Especial dos Direitos Humanos da Presidência, Nilmário Miranda, pelo comandante do Exército, general-de-Exército Francisco Roberto de Albuquerque, e por parlamentares. “É o maior contingente de soldados que o Brasil desloca ao Exterior desde a Segunda Guerra Mundial, quando ajudamos a derrotar o fascismo”, lembrou o ministro Viegas.

Patrulha – Apesar da calmaria que se seguiu à
partida de Jean-Bertrand Aristide do Haiti, Porto Príncipe ainda apresenta um clima de tensão perceptível nas ruas. Existem cerca de 25 mil haitianos fortemente armados, ligados aos paramilitares que ajudaram a depor Aristide, às milícias chimères (pró-Aristide) e às gangues do crime organizado. As patrulhas da ONU não têm poder de polícia e, por isso, não podem efetuar prisões. Para isso, são sempre acompanhadas por um policial haitiano e um intérprete – a maioria da população fala créole. Os soldados e fuzileiros navais da Brigada Haiti, como se chama o contingente brasileiro, estão dispersos pela capital e um pelotão de 39 soldados está em Hinche, a 130 quilômetros ao norte de Porto Príncipe. Desde sua chegada, há um mês, os soldados brasileiros já realizaram mais de 550 patrulhas, a pé ou em veículos de transporte de tropa, como os blindados Urutu. “Conseguimos fazer com que as tropas brasileiras se tornassem parte da paisagem de Porto Príncipe e os haitianos, aos poucos, vêm se aproximando de nós. Mas é necessário que o país seja reconstruído para que eles se tornem aliados da missão”, disse o general Heleno, comandante da Minustah.

Por segurança, a reportagem de ISTOÉ e os demais jornalistas ficaram hospedados no Navio de Desembarque de Carros de Combate (NDCC) “Mattoso Maia”, ancorado no porto da capital e que agora está suprindo a tropa com água dessalinizada. O deslocamento da reportagem nas ruas da capital era feito em vans da ONU, sempre escoltadas por soldados armados. Nas patrulhas da Minustah pelos bairros pobres, os repórteres que acompanhavam os soldados eram obrigados a usar um colete à prova de balas de sete quilos, além do capacete. “Não podemos arriscar a vida de ninguém. Isso aqui é muito perigoso”, disse o coronel Luiz Felipe Carbonell. Por isso mesmo, o contato da reportagem com a população local foi mínimo, e ocorreu nas proximidades do Palácio Presidencial, no centro de Porto Príncipe. Mesmo assim, deu para perceber que os haitianos, em geral, têm se mostrado muito amistosos com os brasileiros. A passagem das patrulhas provocava alguns acenos e, no máximo, um clima de indiferença, mas nunca de hostilidade. Em várias casas e lojas podiam ser vistas bandeiras verde-amarelas hasteadas, pintadas ou em adesivos. “Eles adoram o futebol brasileiro e conhecem de cor os nomes dos craques da seleção, como Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho ou Cafu”, diz um soldado.

Alternativas – Mas nem todos pensam só em futebol. Mesmo em meio a tanta miséria, nota-se no povo um espírito altaneiro de quem descende de ex-escravos que fizeram a primeira revolução anticolonial e antiescravista das Américas, em 1804. “Nós não queremos intervenção estrangeira. Os países ricos enviaram dinheiro para cá, mas foi tudo para um pequeno grupo que domina tudo. Nós queremos trabalho. E aqui ninguém tem trabalho. Eu mesmo, com 54 anos,
passei quase toda a vida sem trabalho. Todo mundo tem fome. Aqui mesmo,
nesta praça, são poucos os que comeram hoje”, diz Francisco Tomaz, técnico laboratorista e dublê de jornalista. “Tivemos 30 anos de ditadura sob os Duvalier. Depois, muita corrupção, pobreza e grupos brigando por dinheiro. Precisamos nos reconciliar, olhar adiante. O que nos falta é a busca de um interesse comum. Um país é feito pelo povo; fomos um povo de escravos, nascemos pelo trabalho, mas é a política que nos divide”, filosofa Danel Georges, presidente do Movimento de União da Comunidade pela Integração.

Já o padre Pierre Toussaint Roy, que estudou no seminário junto com Aristide, diz que “não existem instituições democráticas que resistam num país em que impera a miséria”. Ele é haitiano, mas mora no Rio de Janeiro, e é o coordenador regional da Plataforma Interamericana de Derechos Humanos, Democracia y Desarrollo. Para Roy, o Brasil precisa se diferenciar dos americanos, ligando a missão militar a um plano de reconstrução econômica. “Não adianta desarmar os paramilitares e depois organizar eleições. Depois que as Forças de Paz saírem, volta tudo como era antes. Por isso, o Brasil deveria fazer um chamado internacional para sensibilizar os países ricos a participar da reconstrução do Haiti”, prega Toussaint Roy.

O governo brasileiro, por sua vez, tem um discurso semelhante ao do padre haitiano. “O desarmamento será consequência do crescimento do país”, diz o general Heleno. Mas, enquanto a diplomacia não produz seus efeitos, o Brasil parece vislumbrar, na atuação de soldados em forças de paz da ONU, uma nova e nobre missão para as suas Forças Armadas. Afinal, a participação do País em operações como esta vem crescendo nos últimos dez anos: houve “capacetes azuis” brasileiros em Moçambique, Angola, Timor Leste e, agora, no Haiti. “Queremos ser profissionais das forças de paz. Pretendo formar uma brigada específica para atuar em forças da ONU”, disse a ISTOÉ o general-de-Exército Francisco Roberto de Albuquerque, comandante do Exército brasileiro. Nada a ver com soldados do Exército subindo os morros do Rio à caça de bandidos. Afinal, o Haiti não é aqui.

Os repórteres Cláudio Camargo e Leopoldo Silva viajaram ao Haiti a convite do
Ministério da Defesa