A liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na quinta-feira 1º, à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), garantindo a gestantes de todo o País o direito de interromper a gravidez nos casos de fetos anencéfalos (gerados sem cérebro), trouxe à tona a polêmica discussão sobre a prática do aborto. A notícia foi recebida com indignação por algumas entidades e com alívio pela classe médica. A determinação do Supremo atende a um pedido da CNTS, que sustenta que a antecipação desses partos não caracteriza o crime de aborto tipificado no Código Penal por não haver chance de vida do bebê. A anencefalia é uma má-formação fetal congênita fatal em 100% dos casos. Decisões favoráveis à interrupção dessas gestações já vinham sendo proferidas em todo o País. Agora, com a decisão do STF, torna-se desnecessária a autorização judicial. A medida também determina a paralisação de todos os processos em andamento contra gestantes e médicos.

Desde a concessão da liminar, três casos de aborto de fetos anencéfalos já foram realizados. No Rio de Janeiro, uma mãe de 24 anos interrompeu uma gravidez de gêmeos. Em São Paulo, duas gestantes também optaram pelo procedimento e outras três devem fazê-lo na próxima semana. “Há uma interpretação errônea
de que essa decisão possa tornar legal a prática de qualquer aborto. Não se trata disso. Ela não estabelece a obrigatoriedade da interrupção, mas assegura o direito de opção dos pais e protege os profissionais da saúde de processos”, afirma José Caetano Rodrigues, secretário geral da CNTS. A instituição reconhece que esse assunto deve ser discutido com a sociedade, mas alega que a antecipação terapêutica do parto, nome dado à prática, resguarda a saúde da gestante, pois há alto índice de morte do feto.

A liminar será submetida ao plenário do STF em agosto e poderá virar lei. Mas a campanha contra sua ratificação já foi deflagrada. As manifestações de repúdio vieram, principalmente, da Igreja Católica, que considerou a decisão um descumprimento da legislação e uma brecha perigosa para permissões semelhantes. Em nota oficial, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) afirmou que “a Igreja é a favor da vida e da dignidade do ser humano, não importando o estágio do seu desenvolvimento, ou a condição na qual ele se encontre. A vida é um dom de Deus e deve ser respeitada desde o início até o seu fim natural”. A entidade promete pedir ao procurador-geral da República, Cláudio Fonteles – católico praticante –, que se posicione contra a liminar.

Os preceitos religiosos, no entanto, nem sempre são os únicos fatores determinantes na decisão de dar continuidade a uma gravidez desse tipo. Muitas gestantes decidem pela continuação para prolongar o contato com o filho, uma forma de proteção materna. Foi o que aconteceu com a funcionária pública Roseli Frazão Bezerra, 36 anos. Seis anos depois do nascimento de seu primeiro filho, Artur, um garoto saudável, ela ficou grávida. Durante o pré-natal foi detectada uma anormalidade fetal, identificada como síndrome da regressão caudal, que impede o desenvolvimento dos membros inferiores. Anomalia também sem prognóstico de vida. “Sofremos muito. Mas, mesmo contra a opinião do meu marido, optei pela continuação. É importante poder optar. Só a mãe pode decidir o que fazer”, acredita. “Tive uma gestação cercada de cuidados médicos, mas tranquila. A criança nasceu no nono mês, de parto normal. Morreu 48 horas depois. Viveu pouco, mas pude ver seu rostinho”, diz Roseli.

Para o ginecologista Thomaz Gollop, diretor do Instituto de Medicina Fetal e
Genética Humana, de São Paulo, é importante que haja uma separação entre fé e razão. “Nenhuma doutrina pode determinar o que é melhor para a sociedade. Vivemos num Estado laico. Mesmo casais católicos optam por interromper a gestação”, diz Gollop. Segundo ele, mais de dois mil alvarás com autorização para aborto de fetos anencéfalos já foram deferidos no País. Só o serviço do Ambulatório da Mulher da Escola Paulista de Medicina registrou mais de 250 casos de anencefalia nos últimos 16 anos.

Não se sabe ao certo o que provoca a anomalia. De acordo com a professora Anelise Riedel Abrahão, coordenadora da disciplina de medicina fetal da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), estudos apontam uma relação da ocorrência com a carência do ácido fólico (uma vitamina do complexo B), mas o mecanismo da atuação desse ácido na formação do sistema nervoso ainda está em investigação. Outros fatores como predisposição genética, carência nutricional e o uso de drogas e alguns medicamento também contribuem. “A frequência desses casos é de um para mil nascimentos e eles só são diagnosticados a partir da 12ª semana de gestação, por meio de ultra-sonografia”, explica a médica. “É importante observar que toda gravidez com má-formação fetal aumenta o risco de morte da mãe”, completa.

A auxiliar de controle de qualidade Jéssica Priscila dos Santos, 24 anos, ainda não superou o trauma que sofreu há quatro anos, quando descobriu que o bebê que esperava era anencéfalo. A primeira reação foi a de manter a gravidez, afinal era seu primeiro filho. Mas, com o apoio do marido e da equipe médica, acabou tomando a decisão contrária. Ela ainda esperou um mês pela autorização da Justiça, o que aumentou seu sofrimento. “Fiquei muito abalada. Não dormia e chorava o tempo todo. Alternava momentos de raiva, desespero, frustração e sentimento de culpa. Precisei de apoio psicológico para me reestruturar. Mas fiz o que tinha de fazer”, lembra Jéssica, que convive com o medo de engravidar e passar novamente pela mesma situação.