O contraste entre os rendimentos do presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Pedro Corrêa do Lago, e a movimentação financeira declarada à Receita Federal entre 1998 e 2002 chamou a atenção da força-tarefa da Controladoria Geral da União, que investiga a sonegação fiscal e o enriquecimento ilícito por parte de 400 funcionários públicos. Entre as anomalias reveladas por ISTOÉ está a declaração de renda recheada de bens não identificados e sem origem. As esquisitices de Corrêa do Lago, no entanto, não estão restritas à sua declaração de renda. Uma boa olhada na gestão à frente da Biblioteca Nacional (BN) revela um controvertido estilo de administração que realiza uma espécie de privatização informal da instituição, sem licitação. Basta checar as parcerias tocadas por ele, a começar pela tabelinha com a Fundação Miguel de Cervantes (FMC), que se auto-intitula uma instituição de apoio à BN. Na prática, parece acontecer o inverso. Os pagamentos feitos por serviços tradicionalmente prestados pela biblioteca, como a venda de revistas e o registro de livros novos, estão sendo revertidos compulsoriamente a favor da FMC, a título de doação. Essa mesma fundação contrata funcionários para trabalhar na biblioteca. Outra parceria estranha resultou na criação da revista Nossa História, que chegou à nona edição e é identificada na capa como “uma publicação editada pela Biblioteca Nacional”. Apesar da chancela e da utilização do rico acervo de texto e imagem da instituição, a revista em seu expediente informa que é propriedade da “Administradora e Editora Vera Cruz Ltda.”, uma empresa associada ao Banco Alfa.

As contradições foram denunciadas ao Ministério Público Federal e o procurador Maurício Manso investiga o caso. Ele encaminhou à BN, no dia 25 de junho, um questionário que indaga se houve licitação para a edição da revista e quer saber por que o recibo de venda dos exemplares sai em nome da FMC. Ainda não obteve respostas.
Além de ser investigada pela força-tarefa e
pelo MP do Rio de Janeiro, a gestão de Corrêa
do Lago vai também ser objeto de uma devassa por uma comissão do Ministério da Cultura,
criada na terça-feira 13 para investigar as denúncias de ISTOÉ.

A Biblioteca Nacional abriga o oitavo maior acervo público do mundo, com cerca de 8 mil peças. Em suas estantes está boa parte da memória do Brasil. É deste patrimônio, além da marca da biblioteca, que a editora Vera Cruz lança mão para editar a Nossa História, com tiragem de 50 mil exemplares vendidos a R$ 6,80. “É importante saber se houve licitação nesse caso”, afirma Manso. Através da assessoria de imprensa, a editora confirma que a revista é propriedade sua. Em carta ao jornal Tribuna da Imprensa, Corrêa do Lago explica: “Não é necessária uma licitação, pois se trata de uma parceria proposta à Biblioteca.” Para ele, “nem a auditoria do Tribunal de Contas nem o MP ou a polícia têm qualquer objeção a esse procedimento”. O presidente da FMC, Pedro Mariani, também dono do banco BBM, confirma que a publicação é uma parceria entre a fundação e a Vera Cruz. “O dinheiro da venda é revertido integralmente para a fundação, que existe para apoiar os projetos culturais da BN”, explica Mariani. O procurador estranha: “Não existe menção a essa fundação em nenhum espaço da revista”, diz Manso.

Terceirização – Criada em 2002, na gestão de Eduardo Portella na Biblioteca Nacional, a FMC é a parceira preferencial da administração Corrêa do Lago. Autorizada pelo Ministério da Cultura a captar em 2003 até R$ 6 milhões em
projetos culturais, a fundação está a todo vapor. Teve aprovado um financiamento de R$ 500 mil do BNDES para reforma arquitetônica na biblioteca e vai receber da Petrobras R$ 273.484 para recuperação de uma importante coleção do teatro musical carioca, também sediada na BN. Outro tipo de apoio prestado pela FMC
é o pagamento de servidores para atuar na biblioteca. Esse tipo de terceirização, comum em muitos órgãos públicos, é usado para admitir funcionários sem a burocracia do serviço público. As contratações não podem, porém, incluir servi-
dores que trabalhem na atividade-fim, como bibliotecários e historiadores. Isso poderia caracterizar burla à lei do concurso público. No comunicado interno de abril passado, no entanto, era possível constatar a atuação de 15 bibliotecários e dois historiadores pagos pela FMC.

A fundação fica também com o dinheiro pago por escritores que registram seus livros e recebem o número de série mundial, o International Standard Book Number – valores que vão de R$ 3 a R$ 100. Mariani nem arrisca explicar por que a biblioteca abriu mão dessa função, que desempenhava há anos, em favor da entidade. “Não tenho informação suficiente sobre o assunto”, afirma o presidente da FMC. Através da assessoria, Corrêa do Lago informa: “A própria ISBN, uma agência internacional com sede em Berlim, determina a quem delega a gestão operacional em cada país. E é comum escolher fundações privadas.” O que não disse, porém, é que a FMC foi indicada pela própria diretoria da BN. Sobre as compras feitas na livraria da biblioteca que são revertidas em doações, Corrêa do Lago argumenta que os livros vendidos ali são da fundação e sua venda acaba “beneficiando diretamente os projetos da Biblioteca”.

 

No mesmo dia em que ISTOÉ publicava a reportagem sobre o enriquecimento dos servidores federais, o Ministério da Cultura tentava explicar, através de uma nota, a portaria do ministro Gilberto Gil que autoriza a Capivara Editora, do presidente da BN, a captar recursos pela Lei Rouanet. Segundo o texto, a portaria, que prorrogava o prazo para a captação de recursos, foi publicada no dia 5 de fevereiro, 12 dias antes de Corrêa do Lago assumir o cargo. “De qualquer forma, essa gestão considera inaceitável que os servidores se beneficiem direta ou indiretamente da lei”, diz a nota. O Diário Oficial da União mostra que a alta cúpula desconhece o próprio Ministério. Na edição do DOU de 18 de março, um mês após o colecionador tomar posse, Gil autorizou Corrêa do Lago a captar mais recursos para a obra Renda = Renda: Afirmação Local, por intermédio de outra de suas editoras, a Marca D’água. No dia 12 de março, a editora recebeu autorização do ministro para complementar os recursos para o livro Liga das Senhoras Católicas de São Paulo. O Ministério esquece de esclarecer também que foi durante a administração de Gil que Corrêa do Lago conseguiu a liberação de verbas para os livros cujos recursos foram captados pela Capivara Editora. Durante os meses de abril a dezembro de 2003, a Petrobras liberou R$ 650 mil para dois livros do colecionador.

Na mira – As investigações da força-tarefa indicam que desde o governo Fernando Henrique, Corrêa do Lago era pessoa carimbada na aprovação de livros por meio da Lei Rouanet. Para isso, contava com o apoio de uma parceria importante: a funcionária Maria Cecília Londres da Fonseca, uma das principais assessoras do ministro Francisco Weffort, também investigada pela Controladoria. Os dois teriam desempenhado, segundo as investigações, papel decisivo para a aprovação de recursos para a Fundação Moreira Salles, que captou esses recursos para a compra de um conjunto de acervos de fotos do século XIX. As obras foram compradas do próprio Corrêa do Lago. É essa transação que ele usa para tentar justificar os R$ 2,4 milhões enviados às Ilhas Cayman. O poder de aprovação de captação de Corrêa do Lago e de seus amigos se estendeu também ao governo Lula. Braço cultural do Unibanco, onde Corrêa do Lago trabalhou durante anos, o Instituto Moreira Salles conseguiu em outubro de 2003 a autorização para captar R$ 1,3 milhão de um lote de fotografias e mais R$ 400 mil para editar um livro de fotos – aquelas que haviam sido adquiridas do próprio Corrêa do Lago.

O presidente da CPI do Banestado, senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), quer saber dos bancos privados e do Banco Central como os servidores conseguiram fazer vultosas remessas de dinheiro para contas no Exterior e, ao mesmo tempo, esconder esse patrimônio das declarações do Imposto de Renda. “Os banqueiros têm de ser responsabilizados. São co-responsáveis pelo envio ilegal do dinheiro ao Exterior, seja por servidores ou não”, disse. Ele também não entende como o Banco Central não informa à Receita Federal as contas abertas no Exterior. O ministro-chefe da Controladoria Geral da União, Waldir Pires, sugeriu que a Receita altere o formulário de declaração de IR para que os contribuintes, servidores ou não, sejam obrigados a informar a origem do dinheiro recebido como rendimentos não tributáveis. Colaborou Leonel Rocha (DF)