A senha era simples: quando o agente do FBI Melvin Purvis acendesse o charuto, seria um aviso de que o gângster John Dillinger estaria saindo do cinema acompanhado de uma mulher vestida de saia laranja e blusa branca. Assim que Dillinger chegasse à calçada, os outros agentes estrategicamente posicionados na rua deveriam alvejá-lo, mesmo se ele estivesse em meio à multidão. A ordem era matar, pois Dillinger estaria armado e se tratava de um homem perigoso. Parece ficção, mas essa passagem, bastante conhecida, é real. Faz parte da história do crime organizado nos EUA e aconteceu em Chicago há 75 anos, no dia 22 de julho. Dillinger, o ladrão de bancos mais procurado do país, acabava de ver justamente um filme de gângster – “Vencido pela Lei”, no qual Clark Gable interpretava um bandido condenado à cadeira elétrica. Essa cena foi esplendidamente refeita em “Inimigos Públicos”, que estreia no Brasil na sexta-feira 24. É o trabalho que traz Johnny Depp de volta ao cinema adulto depois de inflar os bolsos no papel do corsário de “Piratas do Caribe”: ele interpreta justamente o criminoso. Purvis é vivido por Christian Bale. Trata-se também da mais nova incursão do cineasta Michael Mann, diretor de “Colateral” e “Miami Vice”, no mundo do crime. Só que dessa vez ele escolheu uma história emblemática desse gênero, como se quisesse refletir sobre o fascínio que ele sempre exerce nos espectadores.

A trajetória de Dillinger também é emblemática porque foi a partir de sua eliminação pelo FBI que o “escritório de investigações” passou a se chamar “federal” e ter mais autonomia para atuar em todo o país. Isso conferiu um poder antes impensado à figura de seu diretor, J. Edgar Hoover (interpretado por Billy Crudup), o homem por trás da cruzada contra o gangsterismo e que nas décadas seguintes atuaria em questões cruciais da política interna americana. Bandidos continuam existindo tanto nos EUA como em qualquer parte do mundo, é claro. Mas, de certo modo, a história de Dillinger representa um réquiem da fase heroica desse tipo de marginalidade urbana e é com um olhar preciso e até poético para esse momento que Michael Mann realizou “Inimigos Públicos”. Logo no início do filme, os estalidos das rajadas de balas tomam conta da tela – e serão uma constante, assim como o extermínio progressivo de todos os gângsteres notórios dos EUA naquela época. Segundo o FBI, só em Chicago existiam 1,3 mil quadrilhas em meados dos anos 1920. E isso não podia continuar. O primeiro a cair foi Pretty Boy Floyd (Channing Tatum). Depois sucumbiu Baby Face Nelson (Stephen Graham). Mas a caçada final iria se dar justamente com Dillinger.

Revelar esse detalhe não tira o interesse da história, pois todo mundo entra no cinema sabendo que aquele sujeito debochado, que se julgava um Robin Hood adaptado aos anos da Depressão, vai ser morto. Dillinger era um bandido que ia ao cinema ver filmes de bandido. Foi uma celebridade em sua época: fazia piadas com os repórteres policiais e numa das vezes em que a polícia conseguiu prendê-lo recebeu cumprimentos dos pedestres no caminho para a cadeia – até porque durante a crise econômica os bancos eram odiados e seus assaltantes, idolatrados. Um dos fascínios provocados pelos gângsteres, mostra Mann, é decorrente daquela máxima engolida pela ideologia da juventude eterna dos dias de hoje, que afirma que o bom é viver rápido e morrer jovem. Quando Dillinger conhece Billie Frechette (Marion Cottilard), uma garota que trabalha na chapelaria de um restaurante, com quem partilharia a “vida doméstica”, ela lhe pergunta o que faz para sobreviver. O gângster a alveja com a revelação provocativa: “Roubo bancos.” O que mais a assusta, no entanto, é a resposta sobre o que ele quer dela. “Tudo. E agora”, diz.

Essa urgência percorre todo o filme num roteiro bem construído que alinhava a sua vida de roubos milionários a um romance acidentado e sem futuro. Um mistura explosiva que não permitiu ao personagem, que morreu aos 31 anos na vida real, usufruir nenhuma coisa nem outra. Michael Mann, que nasceu em Chicago e, portanto, foi marcado por essa verdadeira lenda urbana, baseou-se num calhamaço sobre o assunto chamado “Public Enemies: America’s Greatest Crime Wave and the Birth of the FBI, 1933-34” (Inimigos Públicos: a maior onda de crimes da América e o nascimento do FBI, 1933-34, ainda inédito no Brasil), do jornalista Bryan Burrough. O diretor foi tão preciosista ao recontar esses casos policiais que rodou algumas cenas nos locais reais em que eles aconteceram. Entre as passagens famosas da vida do retratado que se privilegiaram dessa autenticidade estão a fuga da prisão de Crown Point, quando ele usou uma pistola falsa; a emboscada de Little Bohemia Lodge, uma pousada onde Dillinger costumava descansar entre um roubo e outro e de onde escapou numa investida do FBI; e, finalmente, a longa sequência de sua ida ao cinema Biograph, na Lincoln Avenue, no centro de Chicago. O diretor mandou “redecorar” a via segundo a arquitetura dos anos 1930, o que incluiu a recolocação de trilhos de bonde no asfalto.

Para não quebrar o ritmo da narrativa, Mann antecipou a morte de Baby Face Nelson em quatro meses: na vida real, esse criminoso com cara de criança (daí o apelido) e temperamento sanguinário seria alvejado pelos agentes federais depois do desaparecimento do companheiro. As lendas em torno de Dillinger dizem que ele foi traído pela prostituta romena Anna Sage (Branka Katic), conhecida como “a mulher de vermelho”. Ela teria passado para os policiais a informação de que ele iria ao cinema naquela noite de domingo, em troca de um visto americano definitivo. O vestido vermelho é pura invenção, já que, de acordo com o próprio “bureau”, ela estava de alaranjado e branco. Mais uma vez, Mann realizou esse trabalho totalmente em vídeo de alta definição, o que conferiu às cenas um incrível realismo. É a conjugação dessas inovações técnicas com a contextualização histórica do enredo dentro do surgimento dos filmes de gângster que faz de “Inimigos Públicos” um novo capítulo nas tramas do gênero.