Na manhã nublada de uma quarta-feira, segunda semana de maio, a então secretária da Receita Federal, Lina Vieira, percebeu que não completaria um ano num dos cargos mais cobiçados da administração pública.

Embora ela já incomodasse setores do governo com a sua obstinada independência, até então a condução de sua gestão corria sem maiores sobressaltos. Mas parte de sua rotina seria alterada naquele dia, considerado por ela um divisor de águas: os almoços, quase diários, com o ministro da Fazenda, Guido Mantega, no gabinete do próprio, localizado no sexto andar, deram lugar a encontros fortuitos, meramente técnicos, ao longo das semanas que se seguiriam. Ela sentiu o baque e chegou a comentar com amigos: "O ministro está estranho comigo."

Coincidência ou não, quatro dias antes vazara para a imprensa que a Receita estava investigando uma manobra contábil da Petrobras, que teria evitado que a empresa pagasse R$ 4,3 bilhões em impostos. Em nota oficial, a Petrobras negou que houvesse irregularidade na operação. Mas a informação motivou o pedido de instalação de uma CPI no Senado, tudo o que o governo não queria.

Na tarde da quinta-feira 9, Lina Vieira teve a confirmação daquilo que pressentira dois meses antes. Depois de uma longa apresentação em que ela passou a limpo os números da arrecadação, Mantega foi taxativo: "Preciso substituí-la", disse, meio sem jeito, enquanto brincava com uma caixa de pastilhas Valda.

Na reunião, antes do anúncio definitivo de sua saída, Lina havia dito a Mantega que a arrecadação tinha caído 7,38% em relação a junho de 2008. Mas que voltaria a crescer em julho e agosto. Primeiro, pela retomada da economia, depois porque havia a expectativa de um pagamento de R$ 500 milhões de uma ação na Justiça referente ao Finsocial, além da expectativa de IPO da Visanet, o que implicaria aumento de Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.

Só que as previsões otimistas, naquele momento, já soavam como palavras ao vento. Atônita, logo depois da demissão, Lina correu ao seu gabinete. Disparou telefonemas, avisou os seus maiores aliados – os dez superintendentes regionais da Receita – e reuniu os assessores para montar um documento com os resultados dos 11 meses de sua gestão. Ela temia ficar com a pecha de incompetente. "Eles vão aproveitar a queda da arrecadação, mas todo mundo sabe que o problema é a Petrobras", desabafou um de seus auxiliares.

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O documento de 63 páginas ficou pronto às 19h30 da terça-feira 14. "A (ministra) Dilma (Rousseff), que é presidente do Conselho da Petrobras, ficou irritada porque esse dinheiro (da Petrobras) iria para o PAC. Uma bobagem. Se ele fosse recolhido em impostos também poderia ir para o PAC, só que demoraria um pouco.

Mas o que iria acontecer se todas as empresas resolvessem fazer o mesmo?", questionou um dos principais assessores de Lina em conversa com ISTOÉ. Apesar do seu perfil sereno, Lina também cuspiu fogo em conversas reservadas. Num momento de rara irritação, chegou a reclamar da ministra Dilma: "Eu não podia perguntar para ela se podia fazer o meu trabalho", desabafou a amigos. Em entrevista exclusiva à ISTOÉ, Lina, embora mais cautelosa, foi clara: "Não submeteria o meu trabalho a ninguém.

A ministro nenhum. Não aceito ingerência política." Oficialmente não houve explicação para a saída da secretária da Receita 11 meses e 15 dias depois de assumir. Nos bastidores, sabe-se que o caso Petrobras foi um fator agravante. Mas fez parte de um processo de desgaste. Inicialmente indicada para ser a eminência parda do secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Nelson Machado, Lina, pelo seu estilo independente, firme em suas posições, criou asas. "Passamos a fazer o planejamento da arrecadação com foco nos grandes contribuintes.

A fiscalizar com profundidade. Saímos da superfície. Tiramos o foco da fiscalização que estava nas despesas médicas e viramos o foco para a análise das compensações", contou à ISTOÉ. "Assim que verificamos a análise da queda da arrecadação por diversos motivos, baixamos todas as empresas que estavam utilizando essas compensações em diligência." Lina não diz, mas entre elas estavam não só a Petrobras como grandes bancos, estatais e as maiores empresas do País.

Ela também mudou toda a estrutura do órgão. Substituiu sete dos dez superintendentes, criou o processo seletivo interno para delegados e inspetores, na tentativa de evitar nomeações políticas, e iniciou a descentralização das autuações. Com 33 anos de Receita, prestes a se aposentar, Lina fez o que planejava à frente do órgão. Mas garante que trabalhou afinada com Mantega. "Recebi as diretrizes do ministro, de uma nova gestão, de liderança, de descentralização", garante a ex-secretária. "Mas incomodamos os grandes contribuintes."

Quando avisou a Lina que ela seria demitida, Mantega tinha em mente nomear o atual presidente do INSS, Valdir Simão. Mas foi surpreendido por uma rebelião dos superintendentes regionais e de cinco chefes-adjuntos, que ameaçaram deixar o cargo. Nomeou interinamente o secretário-adjunto da Receita Federal, Otacílio Cartaxo, um dos braços direitos da ex-secretária, e saiu de férias.

O ministro da Fazenda só volta dia 27 de julho, quando espera ter um clima mais tranquilo para fazer a mudança na Receita Federal, que vai exigir muito jogo de cintura, pois os auditores não aceitam nenhum nome ligado aos ex-secretários Everardo Maciel e Jorge Rachid. Uma das maiores apostas é Nelson Machado acumular o cargo.

Apesar da demissão, Lina diz sair satisfeita. Não é por menos. Ela fez o sucessor, mesmo que interinamente, e deixa no comando da Receita seus principais auxiliares. Depois de cumprir quatro meses de quarentena, a ex-xerife pretende se apresentar na quarta região fiscal, onde está lotada, e gozar três meses de licença-prêmio, sair de férias e, depois, se aposentar. "Saio feliz pelo que realizei", garante.

Os grandes têm muita força"

ISTOÉ – Por que o ministro da Fazenda, Guido Mantega, não foi comunicado sobre a Petrobras?
Lina
– Não posso fazer distinção entre o ministro da Fazenda e outros. Não tenho o direito de falar da empresa A, B ou C.

ISTOÉ – Se ele reclamou, foi porque esperava…
Lina –
Não submeto o meu trabalho a ninguém. A ministro nenhum. Não aceito ingerência política, porque senão você não consegue fazer nada. É um princípio basilar.


ISTOÉ – Parece que o governo recebeu muitas reclamações da sra.
Lina
– Bem, reclamar, toda empresa tem o direito de reclamar. Nossa carga tributária é muito alta. Mas nunca me furtei a atender ninguém.

ISTOÉ – Deputados dizem que a sra. não os recebia?
Lina
– Recebia todos. Mas hoje os cargos de delegado e inspetor são assumidos por meritocracia. Isso pode ter incomodado muitos parlamentares porque, com muita educação, que me é própria, eu sempre dizia: "Nós temos aqui na Receita um modelo de preencher os cargos, então as pessoas que os senhores estão indicando podem participar do processo seletivo."

ISTOÉ – A sra. foi criticada por nomear sindicalistas para as superintendências.
Lina –
As pessoas estavam nos cargos há 13, 14 anos. Nós precisamos dessa oxigenação e 95% dos auditores são sindicalizados. Tivemos um processo transparente, mas incomodamos muito. Não incomodamos só as pessoas que já estavam no poder há muito tempo, mas incomodamos os grandes contribuintes, porque mudamos o foco da arrecadação, tiramos o velhinho da malha fina e colocamos o foco naquele que realmente tem as condições de pagar.

ISTOÉ – A sra. foi demitida por incomodar muito?
Lina –
Pode ter sido, né? A gente sabe que os grandes têm muita força.

ISTOÉ – Como a sra. classificaria a sua passagem pela Receita Federal?
Lina
– Um grande desafio. Tiramos a blindagem da Receita e ajudamos os entes federados a avançar na fiscalização. No momento em que Estados e municípios passam a ter informações, que antes estavam trancadas aqui, eles têm a oportunidade de cruzar dados e fazer as cobranças que antes não tinham condições de fazer.


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