A garota inglesa Hannah Clark, 16 anos, entrou para a história da medicina. Ela se tornou a primeira pessoa conhecida do mundo a experimentar uma total recuperação de seu próprio coração, depois de ter sido submetida a um transplante cardíaco. A regeneração foi tão eficaz que permitiu a retirada do órgão que havia sido doado e com o qual seu corpo também conviveu durante 11 anos. Os detalhes do seu caso foram divulgados na última edição da revista científica The Lancet.

A história de Hannah é, na verdade, uma fabulosa crônica de luta pela vida. O problema no coração da menina foi identificado em 1994, quando ela tinha 8 meses. A quase completa incapacidade de seu coração de distribuir o sangue para o corpo era derivada de uma miocardiopatia dilatada, uma doença que enfraquece o músculo cardíaco. A enfermidade tem um prognóstico muito ruim. Por essa razão, os médicos resolveram tentar um transplante de coração, a saída mais usada para esses casos.

O procedimento foi feito quando ela estava com 2 anos. Os médicos fizeram algo diferente: implantaram o coração doado ao lado do coração de Hannah. Imaginaram que, se o coração da menina ganhasse um descanso, quem sabe pudesse se recuperar. Na cirurgia para o implante de um coração ao lado do outro – chamado transplante paralelo -, o órgão é suturado no coração nativo em uma tal disposição que as faces direitas de cada um ficam unidas, com uma comunicação entre elas. Quando chega, o sangue pode seguir para um ou para outro.

Logo após a operação, cerca de 70% do sangue que será distribuído para o corpo é enviado pelo coração novo. Dessa maneira, o coração doente acaba ganhando um repouso. Era essa pausa que os médicos torciam ser suficiente para que o coração de Hannah ganhasse nova vitalidade. Foi o que aconteceu. Cerca de cinco anos depois, os dois corações funcionavam normalmente, cada um bombeando metade do sangue circulante pelo organismo. Porém, ela desenvolveu o tumor de Epstein-Barr, causado pelo uso de remédios para diminuir a rejeição do corpo ao órgão transplantado. Como o câncer resistia ao tratamento e o coração da menina continuava operando normalmente, decidiu-se tirar o coração doado – para não precisar usar mais as drogas antirrejeição (leia mais detalhes da história no quadro abaixo).

Mas um temor permanecia: o de que o coração de Hannah não mantivesse o bom ritmo, já que trabalharia novamente sozinho. "Mas agora, três anos depois da remoção do coração, vimos que o coração realmente se recuperou, como uma mágica", afirmou o cirurgião Magdi Yacoub, do Imperial College London, na Inglaterra, um dos responsáveis pelo caso. Depois de passar a vida em uma rotina de internações e remédios, Hannah festeja as novas possibilidades à sua frente. "Faço esportes e trabalho com animais, o que era impossível até pouco tempo atrás", contou.

A história da garota deu ainda mais fôlego a uma discussão que instiga a cardiologia: a capacidade de regeneração do coração. Até cerca de 20 anos atrás, acreditava-se que o órgão não apresentava essa habilidade, diferentemente de outros, como o fígado. "Mas começaram a surgir relatos de recuperação espontânea", conta o cirurgião Alfredo Inácio Fiorelli, do Instituto do Coração, em São Paulo. Hoje se sabe que isso pode ser possível em casos nos quais o órgão é colocado em repouso, ou seja, tem diminuído seu esforço, por meio de remédios ou, em casos mais graves, com o uso de coração artificial. Agora, com o exemplo de Hannah, é possível confirmar o fenômeno da regeneração das células do músculo cardíaco após um transplante paralelo.

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O que ainda intriga os médicos é como se dá esse processo. "Há hipóteses em estudo", diz Evandro Tinoco Mesquita, diretor clínico do Hospital Pró- Cardíaco, no Rio de Janeiro (leia quadro ao lado). "Pode ser que as próprias células do músculo cardíaco tenham capacidade de se multiplicar", explicou à ISTOÉ o cirurgião Michael Parmacek, da Universidade da Pensilvânia (EUA) e autor de um artigo sobre o tema publicado no jornal científico The New England Journal of Medicine.

Mesmo não conhecendo os caminhos da regeneração, os cardiologistas sabem que essa certeza mudará muita coisa na maneira como se trata o coração. Terapias à base de medicações que estimulem essa capacidade poderão ser criadas, diminuindo a necessidade de intervenções mais agressivas. No caso dos transplantes, a opção pelo modelo que preserva o coração doente passará a ser ainda mais considerada."O que aconteceu com Hannah nos levará a examinar as chances de o coração se recuperar na hora de optar pelo tipo de transplante", diz o cirurgião José Pedro da Silva, do Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo.

Em princípio, só não apresentariam condições de regeneração órgãos que sofreram múltiplos infartos (neles, as artérias provavelmente estão muito comprometidas) ou que apresentam lesão em mais de 45% de sua área. "Mas se as possibilidades forem grandes, deixar os dois corações pode ser uma alternativa interessante. Há uma tendência de se procurar meios de fazer essa espécie de ponte para a recuperação do coração nativo." Do ponto de vista físico, manter dois corações dá mais vigor à engrenagem que nos mantém vivos. Do ponto de vista emocional, quem sabe também não nos ajudaria a amenizar o impacto das emoções?

 


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