Quando, na noite de quinta-feira 29, 100 mil balões coloridos caíram sobre a arena do ginásio FleetCenter, em Boston, a massa democrata ali reunida adquiriu a confiança de que seu candidato, John Kerry, era a bola da vez para ocupar a Casa Branca a partir de janeiro de 2005. Ao ser oficialmente indicado candidato do Partido Democrata às eleições de novembro, Kerry fez aquilo que faltava até então na própria campanha. Foi o discurso de sua vida – como lhe era cobrado –, em que não faltaram comparações entre ele e o atual presidente, George W. Bush. “Em minha Presidência a América não fará guerra porque quer. A América irá para a guerra porque necessita”, disse numa referência à guerra de escolha do atual presidente, o Iraque. A oratória também apelou para a união de um país que está – como sempre esteve – dividido exatamente ao meio em suas paixões políticas. Antes de esta convenção abrir as portas em 26 de julho, Kerry batia Bush nas pesquisas – 46% a 43% das intenções de voto. Toda essa massa promete não mudar de lado até a hora do voto. Mas cerca de 8% permaneciam em Estados importantes, que receberam e vão continuar merecendo todos os esforços dos dois candidatos. Os democratas apelaram para essa minoria nos quatro dias de sua festa. E não houve gritos de batalha para não assustar quem está em cima do muro. Na primeira convenção política sediada por Boston, a mensagem de Kerry, o senador por Massachusetts, foi histórica como a cidade que o consagrou. O mesmo local onde a imagem do mascote do Partido Democrata foi criada, quando o então candidato à Presidência Andrew Jackson assumiu em 1828 o apelido de “asno” que lhe foi dado pelos adversários. Mandou erguer em frente ao palácio de governo a estátua de um burro – símbolo da perseverança e bom trabalho. John Kerry assumiu para si estas qualidades. Resta saber se o caubói Bush não manda a burrama de volta para o curral, usando o cabo eleitoral que é o medo do terrorismo.

No veredicto da maioria dos presentes ao ginásio FleetCenter, a convenção democrata foi uma enorme chatice. Era esta a quase unanimidade entre os 15 mil jornalistas destacados para cobrir o evento, e que superavam em mais de 3 por 1 os convencionais. Para os 4.319 delegados e 610 alternativos que sacramentaram os nomes de John Kerry e John Edwards para a chapa do partido nas eleições presidenciais de 2004, o clima era do tipo allegro ma non tropo. A multidão queria ver sangue, especialmente aquele arrancado das veias do presidente George W. Bush e seus auxiliares. O máximo que conseguiram foram alguns petardos disparados por gente como o ex-presidente Jimmy Carter, o veterano senador por Massachusetts Ted Kennedy e o indefectível líder negro radical nova-iorquino Al Sharpton. Nenhum deles, diga-se, foi visto ou ouvido pelos telespectadores das grandes redes de televisão nacionais, que optaram por cobrir o evento em apenas 60 minutos – das 22h às 23h, assim mesmo pulando o segundo dia da maratona de discursos. Alegou-se que convenções políticas são espetáculos coreografados, sem grandes surpresas ou interesse jornalístico. “Aqui não tem notícia”, disse peremptório a ISTOÉ o âncora da rede NBC Tom Brokaw.

O comitê de campanha de Kerry–Edwards organizou uma coroação onde estava proibido atacar o presidente W. Bush e seu vice, Dick Cheney. “A nossa mensagem é de otimismo”, dizia Terry McAuliffe, presidente do Partido Democrata. “Não podemos deixar que a convenção se transforme num festival de ataques raivosos ao presidente. Nossa mensagem é de confiança no futuro, não de vingança”, disse. E, para cumprir essa meta, a organização colocou mais de 200 censores de discursos, que passaram o pente-fino e editaram o que seria a oratória dos que ocuparam o palco. Apenas três oradores escaparam às canetas dos revisores: o senador Ted Kennedy, que comparou George W. Bush, o presidente, com George III (1730-1820), o rei britânico durante a Guerra de Independência americana (1776-1783); Jimmy Carter, que se despiu dos trajes de pacifista que ostenta 24 horas por dia e desceu o relho no atual governo. E, finalmente, o impagável reverendo Al Sharpton, subversivo notório, estava escalado para ocupar o pódio por apenas seis minutos. Esbravejou por 20. O homem não seguia a escrita: improvisava como bom pastor negro. Numa referência ao recente apelo de campanha que Bush fez a eleitores afro-americanos, Sharpton disse: “Sr. presidente, o sr. mencionou o Partido Republicano de Abraham Lincoln… Nós estivemos com ele durante a emancipação. Nos foi prometido 40 acres e uma mula. Nós seguimos até o governo do (presidente Herbert) Hoover e não recebemos os 40 acres. Não recebemos a mula. Então, montamos nesse burro e vamos até onde ele nos levar… Sr. presidente, com todo o respeito, leia meus lábios: nosso voto não está à venda.” A galera foi à loucura.

Calmaria – No entanto, estes foram apenas alguns raros momentos em que a raiva dos democratas contra Bush teve eco no palco. Boston, durante os últimos dias 26 a 29, viveu a paz das cidades sob estado de sítio. Fora do FleetCenter, patrulhas de soldados tiveram pouquíssimo trabalho. Os protestos, em sua maioria, eram contra Bush, a guerra do Iraque, ou causas ecológicas. A direita religiosa antiaborto foi fazer maratonas de preces numa igreja católica, longe da área onde os confrontos com os pró-direito de aborto poderiam ocasionar alguma refrega interessante. A prefeitura montou um chiqueirinho – uma espécie de jaula de arame farpado cortante – onde as manifestações perto do centro de convenções deveriam ficar confinadas. O local foi logo apelidado de “Guantánamo”, em referência à prisão americana em Cuba, onde estão os prisioneiros de guerra do Afeganistão. Ali foram vistas, no primeiro dia de bagunça, variadas performances teatrais de péssima qualidade. A chuva torrencial que desabou na quarta-feira 28 impediu a passeata de mulheres vestindo apenas calcinhas fio-dental e adesivos nos mamilos. Era o grito de guerra das feministas pró-lei de aborto e o evento mais esperado pela população masculina – democratas ou republicanos. O cancelamento foi chorado.

Dentro do FleetCenter, a tradicional coleção de chapéus ridículos desafiava qualquer senso de estética. De cabeças de burro tamanho natural a sombreros com urnas, passando por navios, vasos de flores, um quarto de queijo suíço (símbolo de Wisconsin), contornos do Estado do Texas, araras e outros bichos. Como em outros anos, parecia uma assembléia de personificadores de Carmen Miranda. Cada um recebeu uma sacola básica com um pacote de macarrão com queijo, um saquinho de café e um livrinho com modelos e preços de carros usados, como se estivessem num leilão de automóveis. Entre a maioria – os 15 mil jornalistas – havia um comércio aguerrido de credenciais. Nem todos tinham tarjetas que lhes possibilitassem entrar em todas as áreas do FleetCenter. A cobiçada credencial azul, que dava acesso ao plenário e que apenas as estrelas da imprensa americana possuíam, estava pela hora da morte. Uma delas foi emprestada por quatro horas a um correspondente estrangeiro, ao preço de quatro charutos cubanos Macanudo Número Cinco. Valia tudo para se estar mais perto daqueles chapéus, cujos suportes aclamaram John Kerry como candidato oficial. Bem, nem todas as cabeças cobertas o fizeram: 13 delegados eleitores do deputado pacifista de Ohio e ex-candidato nas primárias, Dennis Kucinich, desobedeceram aos comandos de seu líder e votaram nele. Um ato sem nenhuma consequência: mais do que nos anos passados, esta foi uma convenção de cartas marcadas. O difícil agora será convencer os 8% de indecisos do país que John Kerry será tão energético como foi sua festa de aclamação.