DEDICAÇÃO Na Villa de Assis, 18 religiosos a colhem 126 ex-moradores de rua

Recém-saídos da adolescência, eles abandonam família, casa, escola, amigos e um futuro convencional para se dedicar aos outros. Abrem mão de confortos básicos, como dormir em camas, e dividem o chão com moradores de rua.
Vestem-se apenas com hábitos marrons e chinelos e fazem um estranho corte de cabelo, que reproduz a coroa de espinhos de Jesus Cristo. Passam o dia cuidando de pessoas miseráveis, curando feridas, dando banho, cortando unhas e cabelos, fazendo orações.

Mas não são padres, nem querem sêlo. Observar um membro do Instituto Toca de Assis é como voltar à Idade Média. A impressão que se tem é que os integrantes dessa fraternidade, fundada em 1994, circulam pelas cidades não há 15 anos, mas há oito séculos.
Conhecidos como toqueiros, eles carregam muitas semelhanças com os primeiros seguidores de São Francisco de Assis, nascido Francesco Bernardone, no longínquo século XIII, e santificado em 1228 d.C. Muito mais do que os franciscanos legítimos, pertencentes a uma das ordens religiosas mais populares do mundo

As vestes e a tonsura (o corte de cabelo) são os sinais mais evidentes. A barba por fazer e um extremo desprendimento dos bens materiais completam o conjunto de referências ao santo italiano, filho de um rico mercador de tecidos que abriu mão de tudo para cuidar dos pobres. “Mas não somos nem temos vínculos com os franciscanos”, afirma, categórico, o irmão Antônio Maria, 25 anos. Membro da comunidade desde 2002, ele é responsável pela administração da maior casa da Toca de Assis na capital paulistana, a Villa de Assis, onde 18 jovens dão teto, comida e cuidado a 126 pessoas.

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DEVOÇÃO São três horas diárias de oração. De joelhos

O que a Toca se propõe a fazer é resgatar um franciscanismo de raiz”, explica Rodrigo Portella, doutor em ciências da religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). “Nesse sentido, eles realmente não têm qualquer vínculo com os franciscanos, que são muito mais adaptados à contemporaneidade”, afirma. Por exemplo, desde o Concílio Vaticano II (1962-65), reunião de bispos que modernizou várias práticas e rituais católicos, os membros da Ordem de São Francisco foram dispensados do uso das marcas que os identificavam como religiosos. Hoje é difícil, se não impossível, encontrar um que use hábito, tonsura e chinelos. Os franciscanos atuais também têm, em sua maioria, excelente formação acadêmica e são, no mínimo, doutores em ciências humanas, como filosofia e sociologia.

Exemplos de representantes brasileiros ilustres são o cardeal emérito de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns, o prefeito da Congregação para o Clero Dom Cláudio Hummes (um dos postos mais altos da hierarquia católica mundial) e o ex-frei Leonardo Boff. Já entre os toqueiros, só o fundador do instituto, padre Roberto Lettieri, 46 anos, tem formação superior – porque todo o sacerdote precisa ter. O apreço aos livros, na Toca, é visto com desconfiança. “Para muitos deles, o estudo da religião é percebido como uma ameaça à pureza da doutrina católica”, diz o professor Portella. Além disso, comprometer o precioso tempo dos irmãos, como eles se autointitulam, com os livros seria reduzir a dedicação a uma das maiores causas da Toca – o cuidado com os pobres.

“Me encantei com a perspectiva prática de uma vida na radicalidade do Evangelho”, explica irmão André, 20 anos, proclamando um dos mantras dos toqueiros. Hoje são cerca de 255 homens e mulheres espalhados por 75 casas no Brasil e na América Latina dedicados a cuidar de pelo menos 1,3 mil ex-moradores de rua. Atender a todas essas pessoas é um dos princípios fundamentais da “vida na radicalidade do Evangelho” – que inclui ainda o voto de pobreza, obediência e castidade, independentemente de abraçar a vida religiosa ou não. E, mesmo com muita fé, cumprir esses votos e cuidar dos pobres é um desafio. Como postulante – antes de ser um toqueiro, os candidatos passam pelo menos cinco anos como vocacionados, aspirantes, postulantes e noviços –, André já coleciona histórias de entrega e abnegação. Lotado na sala de curativos da casa, ele passa horas limpando feridas de andarilhos e mendigos. “Uma vez, levei 40 minutos para cobrir um ferimento”, lembra ele, que fala do assunto sem inibições, mas sabe que o que diz choca. “Sou feliz quando me preocupo com os irmãos de rua”, diz, referindo-se aos moradores dos becos paulistanos.

Fica evidente que o amor incondicional pelo próximo, principalmente se ele for o mais machucado dos andarilhos, o mais imundo dos mendigos ou o mais bêbado dos alcoólatras, é o combustível desses jovens. Embora muita dessa devoção seja observável dentro das casas da Toca, é na Pastoral de Rua – tida como atividade seminal do grupo – que ela é mais explícita. As primeiras aconteceram há 15 anos, na Praça Bento Quirino, em frente à Igreja Nossa Senhora do Carmo de Campinas, cidade no interior de São Paulo onde nasceu o fundador padre Roberto Lettieri. Hoje é atividade obrigatória em boa parte das casas. Na Villa de Assis, no Centro de São Paulo, a Pastoral de Rua acontece às terças-feiras à noite e aos sábados pela manhã. No evento da terça-feira 23 de junho, os membros da comunidade começaram a chegar às 18h.

O programa era assistir à missa na Catedral da Sé e depois rezar o terço no meio da praça com os moradores de rua. Por fim, seriam servidos 55 quilos de macarronada com suco. Às 19h, terminou a celebração e, aos poucos, a praça foi invadida por toqueiros e moradores de rua. Parecia um encontro de velhos amigos, com longos abraços e beijos carinhosos.

MISSÃO Na Sé (foto acima.), celebração e macarronada. Os jovens cedem suas camas aos pobres (abaixo). Irmão Hésede (à dir.): fé na madrugada

Quando o aglomerado aumentou – cerca de 40 mendigos para no máximo 15 religiosos –, começou o terço. Ele foi acompanhado com atenção pelos poucos presentes, que participaram puxando algumas avemarias. Quando o último amém foi pronunciado, uma horda de 150 moradores de rua se materializou em quatro organizadas filas para pegar o alimento. Naquela noite também haveria a Pastoral de Rua durante toda a madrugada.

Depois de servir a refeição para as pessoas da praça, o irmão Romero, 25 anos, de Betim (MG), puxaria um carrinho de mão cheio de cobertores, curativos e lanches para distribuir entre os pobres do centro da cidade.
“Quando os cobertores e os lanches acabam, a gente senta com um aglomerado de moradores de rua e dorme ali com eles”, explica o irmão Hésede Maria do Santíssimo Sacramento, 32 anos, de Petrópolis (RJ). Veterano de muitas pastorais de rua, ele lembra de uma noite que o marcou. “Eu estava limpando as feridas de um pobre e um sujeito parou o carro e disse: “Nem por US$ 1 milhão eu faria o que vocês fazem.” Ele conta que imediatamente lembrou de Madre Teresa de Calcutá e respondeu como respondera a madre: “Por US$ 1 milhão eu também não faria. Só faço por Deus.”

Fora de contexto, essa frase pode soar piegas o suficiente para despertar desconfianças. Mas poucos religiosos são tão coerentes quanto os toqueiros. “Eles vivem uma imersão absoluta e verdadeira no mundo dos pobres, além de adotarem rotinas bastante rigorosas de adoração”, explica Silvia Fernandes, socióloga e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Todo membro deve rezar pelo menos três horas por dia, de joelhos, na capela da casa onde vive. Eles dormem, exceção feita aos que têm problemas de saúde, no chão e guardam seus pertences pessoais – escova de dentes, dois hábitos, desodorante e meia dúzia de peças de roupa – em uma única gaveta.


Quando terminam o noviciado e são consagrados, adotam um novo nome – uma maneira de recomeçar a vida em Cristo. “Essa radicalidade retoma uma concepção medieval da fé”, diz Portella, da UFJF.
Mas nem tudo é tão medieval assim. A cada dois meses, os jovens da Toca de Assis têm um dia de folga. Aqueles que vivem em casas de cidades praianas costumam se reunir para tomar banho de mar. Os que servem na Villa de Assis, em São Paulo, frequentam uma casa de campo com piscina no interior do Estado. Ninguém pode acompanhar o dia de descanso dos religiosos. “É uma das ambiguidades da Toca”, diz Portella. Ele lembra que há outras. “Fazer com que os irmãos usem hábitos que remetem ao franciscanismo medieval não é necessariamente uma prova de retorno das tradições”, explica. Para Portella, instituir a obrigatoriedade de uma roupa que beira a fantasia atende à sede que os jovens contemporâneos têm de construir uma identidade por meio da imagem.

A loja virtual que vende camisetas, CDs, DVDs, bonés e adesivos com a marca Toca é uma terceira contradição. Não deixa de ser curioso ver um instituto que é ardoroso defensor do voto de pobreza capitalizar a fé de seus simpatizantes. “Mas vivemos única e exclusivamente da providência divina”, explica Antônio Maria, que crê na intercessão do Espírito Santo como forma de levar as pessoas a doarem para a Toca.

Incoerências à parte, a missão de um toqueiro é uma das melhores traduções do ideal de sacrifício e dedicação que permeia a doutrina católica. O alinhamento com Roma é tamanho que a Toca, hoje uma instituição religiosa reconhecida pela Arquidiocese de São Paulo, pleiteia o status de ordem no Vaticano com apoio do cardeal Dom Odilo Pedro Scherer. Com tanta dedicação à oração, aos pobres e à vida consagrada eles têm tudo para conseguir o reconhecimento.

Até vida missionária e desprendida os toqueiros têm. Nenhum membro, por exemplo, passa mais de dois anos em uma mesma casa.
Mas o que pode ser visto como qualidade por Roma cobra seu preço por aqui. Nem todos os pais lidam bem com a partida dos filhos para uma vida nômade e potencialmente perigosa. “Eles não querem que os filhos, geralmente muito jovens, se distanciem da família e vivam uma rotina tão rigorosa quanto a da Toca”, explica o irmão Hésede.

Ele próprio sentiu na pele as restrições familiares. “Meu filho sempre foi muito bonito, achava que ele tinha que casar e me dar netos”, diz sua mãe, Guiomar Dias. “Mas não foi assim que as coisas aconteceram”, resigna-se. “Eu sei que foi o caminho que Deus criou para ele, mas, quando David me disse que iria para a Toca, chorei muito”, confessa Maria de Fátima Conceição Chaves, de Monguaguá (SP), mãe do aspirante David Douglas Guedes, de 17 anos, que chegou neste ano à fraternidade. Os dez dias de férias por ano ajudam a família a matar a saudade. Mas os jovens voltam para casa de hábito, tonsura e chinelos. Nunca mais serão os mesmos.

FRANCISCANOS
– Exigem formação superior (filosofia e teologia) de seus membros
– São dispensados do uso de vestes religiosas
– Fazem uma leitura contextual dos Evangelhos
– Atraem homens mais velhos, com rica formação intelectual
– Fazem um trabalho pastoral amplo – buscando auxiliar a população pobre
– Só aceitam homens

TOQUEIROS
– Não exigem nem ensino médio de seus membros
– Usam hábito, chinelos e tonsura
– Vivem de acordo com a interpretação rígida e medieval dos evangelhos
– Atraem jovens entre 19 e 30 anos, dispostos a agir
– Trabalho pastoral bastante focado no morador de rua miserável
– Abertos a homens e mulheres

 

 

A Toca das Irmãs
Na Toca de Assis, tanto homens quanto mulheres podem viver uma vida consagrada. Mas eles não dividem o mesmo espaço, há unidades separadas. Os trâmites exigem que a candidata passe pela vida de vocacionada, aspirante, postulante e noviça antes da consagração. O processo leva cerca de cinco anos e é experimentado nas casas das Irmãs da Toca – que funcionam como as dos irmãos, só que cuidam, exclusivamente, de mulheres ou de homens doentes. Todas as irmãs consagradas vestem hábitos parecidos com os dos homens, saem de chinelos, mas não têm necessidade de fazer a tonsura – elas usam apenas um véu marrom, da cor das vestes, sobre a cabeça. O foco no cuidado com os pobres e na oração ininterrupta é o mesmo que se vê nas casas masculinas.


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