22/12/2010 - 22:30
A narrativa do romance “Os Anagramas de Varsóvia” (Record), passado em um gueto de judeus, foi milimetricamente calculada pelo autor, Richard Zimler, para que a história não resvalasse na previsibilidade dramática. Americano radicado em Portugal e premiado pelo livro “O Último Cabalista de Lisboa”, Zimler equilibra os tons policial e histórico ao reconstituir uma saga judaica em tempos de nazismo. O resultado é um poderoso romance cujo narrador é um homem morto. A trama tem como combustíveis a amizade, a coragem e os laços de afeto.
Leia um trecho do livro:
Desde pequeno que trago um mapa de Varsóvia nas solas dos pés, por isso consegui fazer o caminho quase todo ate minha casa sem qualquer engano ou esforço.
Foi então que vi o alto muro de tijolo a volta da nossa ilha. Meu coração deu um salto no peito, e uma esperança impossível dispersou meus pensamentos — embora eu soubesse que Stefa e Adam não estariam em casa para me dar as boas-vindas.
Um guarda alemão gordo, de pé, mastigava uma batata fumegante junto ao portão da rua Świętojerska. Assim que me esgueirei lá para dentro, vi um jovem com um boné de tweed enterrado na testa passar por mim correndo. O saco de farinha que levava ao ombro pingava pontos e traços de liquido sobre o seu casaco — código Morse escrito com sangue de galinha, imaginei.
Homens e mulheres vagueavam pesadamente pelas ruas geladas, esmagando a camada de gelo que as cobria com os sapatos gastos, as mãos enfiadas bem fundo nos bolsos dos casacos e nuvens de vapor a fugir-lhes da boca.
Na minha inquietação, quase tropecei num velho que morrera de frio a porta de uma pequena mercearia. Vestia apenas uma camisa toda suja e tinha os joelhos nus e terrivelmente inchados encolhidos contra o peito, numa tentativa de se proteger. Os lábios cobertos de crostas de sangue estavam de um cinzento azulado, mas tinha os olhos avermelhados, o que me deu a impressão de que o ultimo dos seus sentidos a deixar este mundo fora a visão.
Foi então que vi o alto muro de tijolo a volta da nossa ilha. Meu coração deu um salto no peito, e uma esperança impossível dispersou meus pensamentos — embora eu soubesse que Stefa e Adam não estariam em casa para me dar as boas-vindas.
Um guarda alemão gordo, de pé, mastigava uma batata fumegante junto ao portão da rua Świętojerska. Assim que me esgueirei lá para dentro, vi um jovem com um boné de tweed enterrado na testa passar por mim correndo. O saco de farinha que levava ao ombro pingava pontos e traços de liquido sobre o seu casaco — código Morse escrito com sangue de galinha, imaginei.
Homens e mulheres vagueavam pesadamente pelas ruas geladas, esmagando a camada de gelo que as cobria com os sapatos gastos, as mãos enfiadas bem fundo nos bolsos dos casacos e nuvens de vapor a fugir-lhes da boca.
Na minha inquietação, quase tropecei num velho que morrera de frio a porta de uma pequena mercearia. Vestia apenas uma camisa toda suja e tinha os joelhos nus e terrivelmente inchados encolhidos contra o peito, numa tentativa de se proteger. Os lábios cobertos de crostas de sangue estavam de um cinzento azulado, mas tinha os olhos avermelhados, o que me deu a impressão de que o ultimo dos seus sentidos a deixar este mundo fora a visão.