Um copo de leite hoje, um antiácido amanhã e assim a maioria das pessoas dá cabo da azia – aquela sensação de queimação – até o estômago reclamar novamente. E pensa que, se o episódio se repetir, poderá recorrer mais vezes ao medicamento ou outro escolhido entre as dezenas de produtos comercializados com esse fim. As drogas para acalmar protestos digestivos estão entre as recordistas de venda. No Brasil, de maio de 2003 a junho de 2004 foram consumidos 11,6 milhões de remédios da categoria, segundo o IMS Health, empresa auditora da indústria farmacêutica. Se dependesse dos médicos especialistas em aparelho digestivo, os gastroenterologistas (ou gastros), a venda não seria nessas proporções. “Muita gente vive à base de remédios para driblar a azia, mas é um erro. Se ela for repetitiva, precisa ser examinada”, explica Roberto Rizzi, cirurgião do aparelho digestivo do Hospital São Luiz, em São Paulo.

Em centenas de casos, a queimação na boca do estômago é o primeiro pedido de socorro emitido pelo órgão para que o seu proprietário preste mais atenção nas condições de trabalho oferecidas. “As pessoas estão aprendendo a proteger o coração, mas ainda dão pouca importância aos cuidados com o sistema digestivo. Um dos motivos é a falta de conhecimento sobre as consequências dos maus-tratos praticados cotidianamente contra ele”, afirma o gastro José Luiz Capalbo, do Hospital Nove de Julho, em São Paulo. Entre as consequências estão o mau hálito, noites mal dormidas e, nos momentos de crise, uma sensível piora no humor.

O resultado disso é que cerca de 20% dos moradores das grandes cidades convivem com algum desconforto no estômago e duodeno (a porção superior do intestino delgado). Ou seja, duas em cada dez pessoas estão sujeitas a ter problemas que vão desde a indisposição passageira até gastrites, úlceras e tumores. “São alterações favorecidas pelas características orgânicas, pelos maus hábitos alimentares, pelo uso de certos remédios e pela tensão”, reforça o médico Stephan Geocze, chefe do setor de endoscopia da Universidade Federal de São Paulo. De fato, o stress tem papel de destaque no desenvolvimento de gastrites, úlcera e outras alterações digestivas. Ele desencadeia mudanças no organismo que aumentam a produção dos ácidos estomacais. Por isso, o tratamento muitas vezes inclui medidas para tornar a rotina mais leve.

Apesar de tudo isso, pouca gente procura o especialista para saber a causa de uma azia que vai e volta. “Melhor seria ir e poupar-se da surpresa de descobrir que era sintoma de algo mais sério”, diz a microbiologista paulista Vanessa Sarra, 26 anos. Durante seis meses, suportou o mal-estar. “Parecia engolir chamas”, lembra. Há três meses, já cansada de sofrer, foi ao médico. Depois de uma endoscopia digestiva – exame que investiga o interior do estômago –, descobriu ser portadora de uma úlcera (ferida na mucosa estomacal). Vanessa teve de mudar a rotina. “Estou livre das dores. Tomo um remédio para proteger o estômago, escolho melhor os alimentos, faço cinco refeições por dia e hidroginástica para diminuir a tensão. A úlcera funcionou como um puxão de orelha para notar a qualidade de vida ruim que estava me impondo”, comenta. Histórias como a dela não são raridade. Estima-se que uma entre quatro pessoas que agendam consulta por desconforto digestivo necessita de acompanhamento para tratar males como úlcera e gastrite.

Receios – O temor de sair do consultório com uma lista de alimentos proibidos ou com a indicação de cirurgia é um dos motivos que adiam a procura pelo médico. Os especialistas querem mudar essa impressão. “Não se tira o estômago de ninguém por causa de uma úlcera. O número de cirurgias diminuiu, há remédios eficientes e técnicas de tratamento e diagnóstico sofisticadas. A soma desses avanços aumenta as chances de sucesso do tratamento”, diz Arnaldo Ganc, chefe do setor de endoscopia do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. A mudança na abordagem está embasada no maior conhecimento das causas de cada um dos distúrbios estomacais e suas consequências. No vasto campo das gastrites (inflamações no estômago provocadas por diversas razões), a tendência é valorizar a participação das nutricionistas no tratamento. Isso porque há situações em que a mudança de hábitos à mesa é suficiente para controlar os sintomas. “A maneira de comer é até mais importante do que o tipo de alimento”, afirma o médico Jaime Eisig, chefe do grupo de estômago do Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi o que aconteceu com o jogador de futebol Leon Muñoz, um colombiano de 24 anos que atua no Palmeiras. Há dois meses, ele foi parar no pronto-socorro com uma dor abdominal fortíssima. “É uma gastrite acompanhada de colite, um tipo de fermentação intestinal”, conta o atleta. Muñoz agora se alimenta a cada três horas e come quantidades moderadas. Em casos como o dele, a intensidade dos sintomas é um elemento a mais para estimular a mudança de estilo de vida. “Sete em cada dez pacientes acatam a proposta de fracionar a dieta. Para alguns, é o suficiente para eliminar os sintomas. Outros precisam também de medicamentos para inibir a produção de ácido do estômago”, explica Eisig.

Bem menos comum do que a inflamação deflagrada por maus hábitos à mesa, a gastrite medicamentosa é outra que faz estragos consideráveis. “Em pessoas de estômago sensível, ela surge devido ao uso de antiinflamatórios ou de remédios com ácido acetilsalicílico. O abuso também leva ao problema”, afirma o gastro Capalbo. Em geral, essas irritações são facilitadas pela automedicação. Se o dano for recente, é possível reverter o quadro apenas suspendendo o remédio. A publicitária Cidinha Bueno, 59 anos, de São Paulo, chegou a ter sangramentos por tomar com frequência antiinflamatórios contra dores lombares. “Agora, quando preciso desses remédios, tomo antes um protetor do estômago”, revela. A má notícia é que estudos recentes indicam que até os antiinflamatórios de última geração estão sob suspeita. “Os trabalhos mostram que, ao contrário do que se pensava, eles também causam irritação na mucosa”, revela Ganc.

Ácido – A doença do refluxo gastroesofágico, ou simplesmente refluxo, é outra alteração digestiva que afeta muita gente. Quem padece da enfermidade está sujeito ao retorno do conteúdo ácido do estômago para o esôfago (a porção anterior ao órgão), podendo provocar vômito ou gerando azia. Calcula-se que atinge aproximadamente 20 milhões de brasileiros adultos. O que poucos imaginam é que o mal também perturba crianças. O paulistano Leonardo Olivato, dez anos, foi uma das suas vítimas. Desde os quatro anos, o menino sofria acessos quase diários de vômitos. “Alguns pediatras culpavam a alimentação, outros disseram que era virose e até gases”, lembra a mãe, Alice Silva. Em março, a escola chamou-a porque o filho suava frio e tinha dores de barriga terríveis. No hospital, fez uma endoscopia. Assim se descobriu que Leonardo tinha gastrite e refluxo. Hoje, o garoto utiliza dois remédios (para proteger a mucosa do estômago e para estimular os movimentos do intestino) e a cabeceira da cama foi elevada em 15 centímetros para dificultar os ataques. Isso porque, nessa doença, os acessos são mais frequentes à noite por causa da posição horizontal. O tratamento de Leonardo teve apoio da nutricionista Alessandra Coelho, que determinou o fim dos refrigerantes durante a semana e estabeleceu cinco refeições por dia.

A doença se manifesta devido ao mau funcionamento do esfíncter, uma válvula que separa esôfago e estômago e impede a volta do conteúdo ácido do estômago. A repetição do refluxo queima a face interna do esôfago e provoca inflamação. Recentemente, descobriu-se que a enfermidade está associada a males alheios ao aparelho digestivo, como laringite, rouquidão, tosse seca, faringite e bronquite. “Elas podem ser causadas pelos microrrefluxos noturnos. Por isso, especialistas de outras áreas começam a pedir exames para averiguar essa hipótese. É um avanço importante”, avalia o gastro Ganc.

Infarto – O desconhecimento do refluxo dá margem a confusões. “Em adultos, a dor torácica do refluxo, assim como da úlcera, pode ser confundida com problemas cardíacos. E o contrário também acontece”, alerta o cardiologista Sérgio Timermam, do Instituto do Coração, em São Paulo. “A dúvida sobre o sintoma é um dos motivos de atraso nos primeiros socorros que devem ser prestados às pessoas que estão infartando”, completa.

A dificuldade em diferenciar sintomas não é regra. Há muitas novidades a caminho. Na área de diagnóstico, um dos avanços mais recentes é a nova versão da Phmetria (lê-se peagá metria), exame que registra as alterações da acidez esofágica. Atualmente, isso é feito por meio da introdução no nariz do paciente de um cateter mantido por 24 horas. A boa notícia é que em breve o procedimento se tornará mais confortável para os brasileiros. Até o final do mês, deve chegar ao País um teste chamado Bravo, desenvolvido na Dinamarca. Ele é realizado com uma pequena cápsula que adere à mucosa do esôfago, onde medirá a intensidade do refluxo.

Em relação ao tratamento, também há inovações. Os especialistas poderão contar em breve com técnicas aperfeiçoadas para corrigir a válvula defeituosa. “Existem cinco tipos de tratamentos endoscópicos desenvolvidos recentemente e que já estão aparecendo na praça”, avisa o médico Ganc. Uma das três técnicas já aprovadas pelo FDA, a agência americana que regulamenta remédios e terapias, é a que aplica uma corrente elétrica na transição entre esôfago e estômago. “Isso provoca uma queimadura e sua cicatrização. O processo engrossa a parede do esôfago e diminui o refluxo”, acrescenta.

Progressos podem ser contabilizados ainda na luta contra um dos grandes inimigos do estômago, a bactéria Helicobater pylori. Encastelado no estômago de cerca de 70% dos brasileiros, o microrganismo navega no suco gástrico liberando citocinas, substâncias que destroem a mucosa e aderem à parede do estômago. Isso pode provocar irritação, seguida de inflamação, ou lesões. Na década de 90, os cientistas acreditavam que a simples presença da bactéria seria suficiente para deflagrar a úlcera. Em virtude disso, a recomendação era eliminá-la com uma combinação potente de dois antibióticos. Agora, no entanto, diversos médicos descartam o combate medicamentoso radical. Segundo o gastro Jaime Eisig, a presença do bicho não é uma sentença de que a pessoa terá úlcera ou mesmo câncer, outra possível consequência. “Vários estudos mostram que muita gente convive com a bactéria a vida toda sem manifestar problemas gástricos. E há pesquisas ainda não conclusivas indicando aumento dos casos de refluxo e tumores de esôfago depois que ela é eliminada”, assegura. O que se pretende atualmente é descobrir em que portadores o vilão provocará doenças sérias. Um dos caminhos é a identificação de genes da bactéria associados ao surgimento da úlcera. Já se sabe que o H. pylori é motivo de repetição dessas feridas. Neste caso, deve ser eliminado. A grande esperança é a descoberta de uma vacina contra esse invasor, mas até o momento não há previsão de lançamento.

A medicina também se esforça para criar novas armas contra os tumores de estômago, situados entre os que mais roubam vidas. No Hospital do Câncer de São Paulo, por exemplo, os pesquisadores André Montagnini e Luiz Fernando Reis descobriram recentemente no interior do órgão algumas células diferenciadas que oferecem risco de se metamorfosear em câncer. O próximo passo será estudar grupos de portadores dessas células para avaliar sua evolução em cinco anos. No entanto, entre os maiores desafios está a detecção precoce. Isso porque normalmente o tumor só é descoberto em estágio avançado. Por isso, é necessário estar atento a sintomas persistentes, como queimação e dores. Identificado no começo, esse câncer apresenta mais de 90% de chances de cura. Quando são ainda muito superficiais, os tumores podem ser removidos com bisturis especiais durante uma endoscopia. Em casos avançados, tira-se o estômago inteiro. A psicóloga Regina Ramos, de São Paulo, viveu essa experiência. Durante dois meses, ela sentiu pontadas insistentes no abdome. Sem melhorar, foi ao médico. Três dias depois teve o estômago removido e fez sessões de rádio e quimioterapia. “Eu não entendi o que o corpo queria me mostrar. Se estivesse mais ligada, teria ido mais rápido ao médico. Mas tive muita fé, superei a doença e me sinto vencedora. Hoje vivo, durmo e como melhor”, afirma. Fica claro que ninguém precisa falar com o estômago, idéia associada a mal-estar, mas não se pode deixar de ouvir seus apelos.