A culpa deve ser da inglesa Maria Graham, que no século XIX comparou o esplendor da baía de Guanabara ao da baía de Nápoles. O fato é que, agora, as notícias sobre a conquista policial do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, trazem inevitavelmente de volta o diário de outro inglês, o jornalista Norman Lewis, que chegou a Nápoles com as tropas americanas no fim da Segunda Guerra Mundial.

Dias antes, a Itália mudara de lado tão depressa que o armistício com os aliados deixou para trás, em 1943, soldados alemães e acólitos fascistas. Uns, em retirada. Outros, marchando rápido para o mergulho de volta ao fundo sereno da sociedade italiana, longe dos novos ventos políticos que encrespavam a superfície de sua história.

A primeira impressão de Lewis ao desembarcar na Campanha, sob “um esplêndido e tranquilo anoitecer de final de verão”, numa das “mais lendárias praias da humanidade”, diante das ruínas imemoriais dos templos de Paestum e a caminho das ruínas provisórias rasgadas pela guerra, foi de “extraordinária e falsa tranquilidade”.

Numa “região sobre a qual os guias turísticos esbanjam superlativos”, a coisa andava feia. Pais, mães e irmãos escoltavam à sua presença jovens bonitas, querendo trocá-las por comida. Nápoles inteira cheirava “a madeira carbonizada”. Tanques de guerra e bondes enguiçados evaporavam a céu aberto, desmontados por “jovens que faziam suas tarefas como formigas a carregar folhas, carregando pedaços de metal de todos os tamanhos e formatos”. Caçar nesses escombros os suspeitos de colaboração com o nazismo era perda de tempo. Na lista negra oficial, os nomes soavam aos ouvidos ingleses como se todos fossem mais ou menos os mesmos. As descrições de traços físicos não iam muito além de detalhes do tipo “assustadoramente feio”. O equipamento militar sucateado pelos Exércitos de ambos os lados passava a armar os tradicionais bandidos encastelados nas montanhas.

Lewis converteu-se rapidamente do asco à admiração “pela luta desta cidade tão sacrificada, tão faminta, tão privada de todas as coisas que justificam a vida”, acampando “como beduínos em seus desertos de tijolos”. Tomou gosto por uma culinária de ervas mediterrâneas que, no aperto, ajudou a população esquálida a tirar o melhor proveito possível dos peixes tropicais afanados do aquário de Nápoles e lhe permitiu servir ao general americano Mark Clark um banquete de legítimo peixe-boi.

Lewis levaria de lembrança o cheiro que saía das cozinhas napolitanas, abafando o miasma dos esgotos. E o brio dos alfaiates, capazes de reciclar uniformes militares em trajes civis, indispensáveis à urbanidade de homens que voltavam a beijar as mãos das mulheres
e a tratar-se como “egrégio senhor”, assim que foram abolidas as saudações marciais do fascismo.

Ele saiu desse inferno, em 1944, deixando amigos e saudade. E legou à posteridade, ao morrer em 2003, um guia básico para a ocupação de territórios indômitos. O primeiro passo, nesses casos, é entender onde está pisando. E que nada mudará de estalo o imutável. Em Nápoles, pelo menos, a máfia controla até hoje certos serviços públicos essenciais, como a coleta de lixo. E faz dessa prerrogativa um mostruário público
de poder e bagunça.

Marcos Sá Correa é jornalista e editor da revista Piauí