16/12/2010 - 12:00
XEROX
“Não perseguiria alguém que me copiou.
Entendo a cópia como um elogio dissimulado”, diz ele
O arquiteto polonês naturalizado americano Daniel Libeskind, 64 anos, não para. Com 12 projetos em andamento espalhados por nove países em quatro continentes, ele esteve no Brasil recentemente para o lançamento de sua primeira obra no País. O prédio residencial assinado por ele terá 14 apartamentos com preço inicial de R$ 9 milhões. Premiado mundialmente, Libeskind recusa o status de estrela, mas defende a arquitetura autoral. Criador do plano diretor para reconstrução no terreno das antigas Torres Gêmeas, em Nova York, ele esteve no centro das polêmicas do projeto desde o início, mas hoje se orgulha do consenso que viabilizou o começo das obras do prédio substituto. “Acompanho a obra da janela da minha casa”, diz.
"Quem observar o prédio (na área das Torres Gêmeas, que remete à Estátua da Liberdade)
será menos levado para a escuridão de Wall Street"
Torço para que o meu prédio tenha impacto positivo na cidade"
Incomoda-o o fato de que cada unidade do prédio projetado pelo sr. custará R$ 9 milhões em um dos países mais desiguais do mundo?
Não sei quanto vão custar. Não é essa a minha função. Minha função é projetar prédios fantásticos. Seja qual for o prédio, ele deve ter o melhor design possível. E não só para quem mora no apartamento, mas para a cidade também. Adoraria fazer um projeto de moradia popular. Já fiz antes e faria novamente. Arquitetura não é sobre dinheiro. É sobre a qualidade, a responsabilidade e a beleza dos projetos.
Então é coincidência seus projetos serem sempre caríssimos?
Cada projeto tem seu programa e seus objetivos. O que a arquitetura faz é entregar algo além dos custos. Penso o edifício como parte do ambiente no qual ele está inserido, na sustentabilidade do projeto e na perspectiva de que terá impacto positivo na vida das pessoas. Não podemos nos limitar a observar a arquitetura da perspectiva quantitativa.
Quais partes do projeto de construção no terreno onde estavam as Torres Gêmeas, em Nova York, são suas?
O plano diretor é meu. Estabeleci o local do prédio principal, o One World Trade Center, a altura que ele teria, os acessos e o que os transeuntes poderiam ver do nível da rua. Isso tudo é minha responsabilidade. Não sou o arquiteto-chefe dos prédios em si, mas, como responsável pelo plano diretor, criei um projeto simbólico. Estabeleci, por exemplo, que a altura da torre principal seria de 1.776 pés, uma referência ao ano da independência americana. Também determinei que a forma do prédio remetesse à Estátua da Liberdade. Assim, quem observar o prédio será levado a olhar mais para o rio Hudson e menos para a escuridão de Wall Street.
Que tipos de problemas surgem quando se tenta unir as ideias de arquitetos concorrentes, como foi o caso no terreno das Torres Gêmeas?
Construir uma cidade não é para autoritários. Em Nova York há pessoas diferentes com interesses diferentes. É como em uma orquestra. O plano diretor conduz e fornece a música, mas são muitos os que vão executá-la. Tem a Autoridade Portuária de Nova York, uma das maiores organizações governamentais do mundo, investidores, arquitetos, governadores, autoridades tributárias, de transporte, famílias das vítimas do 11 de setembro. Queremos criar um plano que funcione e que traga consenso. É um desafio, mas é o que estamos fazendo.
Então o prédio sendo erguido hoje no Ground Zero, embora não seja o que o sr. desenhou, está de acordo com o seu plano diretor?
Claro. Os arquitetos envolvidos têm sido muito cooperativos. Houve desentendimentos e tensões no começo, mas entramos em acordo e hoje acompanho a obra da janela da minha casa. A construção do novo prédio ganha cada vez mais ritmo.
Trabalhos que têm como clientes governos ditatoriais são menos dignos de reconhecimento?
Sem dúvida, mas há exceções. Poucas, mas existem. Algumas obras são tão boas que subvertem as ditaduras para as quais foram construídas e deixam de ser ferramentas de propaganda.
Quais, por exemplo?
A Casa del Fascio, de Giuseppe Terragni, na Itália. Ela foi construída por ordem do ditador Benito Mussolini, mas externa ideias diametralmente opostas à ideologia fascista. A maioria das obras comissionadas por ditadores, porém, não consegue isso. Veja os prédios de Albert Speer, arquiteto de Adolf Hitler, em Berlim. São verdadeiros propagadores da ideologia nazista. Há prédios assim atualmente. E eu os condeno, como condeno toda a arquitetura feita com trabalho escravo para exaltar regimes do mal.
O sr. tem uma ideologia que norteia o seu trabalho?
Claro. Todos têm. A minha ideologia é simples: trabalhar de maneira aberta e promover a justiça, criando prédios que fazem sentido no espaço que ocupam e que estimulem a interação entre as pessoas. As minhas obras têm um papel ético na cidade em que estão. Esse papel pode ser descrito como o de não reforçar ideologias estabelecidas. Trabalhar alinhado a uma ideologia é limitante. Não é bom para arquitetos, escritores e artistas. Não é bom para ninguém.
Como foi sua transição de arquiteto acadêmico para prático?
O Museu Judaico de Berlim, de 1989, foi meu primeiro projeto. Nunca tinha construído nada antes. Mas também nunca acreditei nessa distinção entre academia e prática. A ideia do acadêmico que vive isolado em uma torre de marfim nunca foi meu desejo. Aconteceu que me vi dando aulas de arquitetura. E mais: pensar o projeto antes de executá-lo é muito importante. Estudar a história do terreno, o que o prédio deve dizer – tudo isso precisa ser feito. A arquitetura não é um amontoado de formas erguidas aleatoriamente em concreto ou vidro. É preciso uma atitude humanista e de reflexão diante do projeto. Tive sorte de ter o Museu Judaico de Berlim como meu primeiro projeto. Nunca quis sair construindo qualquer coisa.
Mas o sr. ainda produz teoria? Tem atividade acadêmica?
Espero que meus prédios digam tudo que tenho a dizer. É a forma que encontrei de me expressar. Como um livro ou uma música, quero que eles comuniquem. E sinto que comunicam – tanto meus prédios quanto meus projetos maiores, como o do Ground Zero.
O sr. sofreu com a crise financeira que atingiu o mundo e, especificamente, o mercado imobiliário americano?
Temos projetos espalhados por todo o mundo, o que diminuiu o impacto da crise sobre o nosso trabalho. Mas todos sentiram. Alguns projetos desaceleraram. Mas também ganhamos algumas concorrências, mesmo no meio da crise. Não só sobrevivemos a ela como crescemos em meio a ela.
Neste cenário, mercados emergentes, como o Brasil, surgiram como terreno fértil para investimentos faraônicos na área da construção civil?
Não estou no Brasil por causa do dinheiro. Amo o Brasil, admiro a cultura, a música, o cinema, a comida e as pessoas. Tive sorte ao ser chamado para trabalhar aqui. O Brasil tem um enorme potencial de crescimento. Há coisas extraordinárias acontecendo no País atualmente e ainda para acontecer no futuro próximo.
Dá para comparar São Paulo com Nova York?
s. Para mim, Nova York está para São Gimignano, na Itália, como São Paulo está para Nova York. Perto do caos e do gigantismo de uma megalópole como São Paulo, Nova York é uma vila toscana. Mas o caos é empolgante e projeta algo que julgo fundamental: mudança. Vejo mudanças importantes em São Paulo para melhor. Espero contribuir para essa melhora com o meu prédio. Torço para que ele tenha impacto positivo na cidade.
Há quem critique a arquitetura do espetáculo, que grita com suas formas, e prefira a arquitetura que sussurra. O que acha da moda da arquitetura espetacular?
A arquitetura que sussurra tem sua função: ser usada em lugares calmos e silenciosos. Você precisa da arquitetura que sussurra no cemitério, por exemplo. Mas cidades são lugares cheios de vida e energia. Não faz sentido sussurrar no meio de uma metrópole. Vamos deixar a palavra espetáculo de lado por um minuto. A arquitetura sempre foi uma arte que precisa ter força. Nunca acreditei na neutralização da arquitetura, como se fosse algo que não devesse ter impacto no desenvolvimento de um lugar.
Prefere a arquitetura que grita por ser uma pessoa urbana?
Não acho adequado falar em arquitetura que grita. Prefiro falar em arquitetura que passa emoção e vida. Há ocasiões para a arquitetura que sussurra, inclusive dentro das cidades. Em um hospital, por exemplo. Mas não na rua. O arquiteto tem de compreender o que ele está fazendo e se adaptar. Como um pianista, ele não pode só saber tocar pianíssimo, ou forte. Tem que ter um espectro de emoções que vai do mais silencioso ao mais dramático. A construção de prédios e a concepção de projetos também devem ser assim, a vida é assim.
Sendo um arquiteto-estrela, o sr. se incomoda ao ver que às vezes a marca Daniel Libeskind é maior do que a arquitetura de Daniel Libeskind?
As pessoas me chamam de muitos nomes, e isso não me incomoda. A ideia por trás do arquiteto com nome, com marca, significa que não estamos mais dispostos a aceitar a arquitetura feita anonimamente, por um comitê. Se você vai a um concerto quer ver e ouvir (os pianistas) Alicia de Larrocha e Glenn Gould. Você não quer ver X ou Y. Quer ver quem admira. Não dou importância ao fato de ser um arquiteto-estrela, mas acho interessante porque sinaliza o fim de uma era em que a arquitetura era feita por um time anônimo de arquitetos. E isso é bom.
O que acha dos projetos claramente inspirados ou quase cópias dos seus?
É uma realidade do mundo moderno. Muitas vezes faço um projeto, meus desenhos são divulgados e surgem construções bem parecidas antes mesmo de eu concluir a minha obra. Faz parte. Mas a arquitetura, como a arte, não é replicável. Ou é autêntica ou não é. E tenho coisa demais para fazer, não perseguiria alguém que me copiou. Até porque, na arquitetura, provar o plágio é muito difícil. Basta mudar um ângulo ou um material e as leis, que são muito fracas, deixam de valer. E mais: entendo a cópia como um elogio dissimulado. Copiar é parte do processo de colocar as ideias em movimento.