Ex-presidente do BNDES critica estratégia do governo para enfrentar alta do petróleo, mas elogia biocombustível

Aos 72 anos, o economista Carlos Lessa desistiu de disputar a Prefeitura do Rio de Janeiro pelo PSB. Por um partido de estrutura ínfima no Estado, seria uma aventura sem maiores conseqüências. Mas a receita que Lessa teria para o Rio é a mesma que tem para o Brasil: é preciso que tanto a cidade como o País recuperem a auto-estima. "O presidente Lula é muito bom nas políticas sociais e tem instinto para o que quer o povo brasileiro, mas não tem nenhuma visão nacional; se ele tivesse, não se deslumbrava tanto com os aplausos que recebe no Exterior", critica. Duro e irônico, Lessa cobra, inclusive, a atitude da mulher de Lula, Marisa Silva, que requereu cidadania italiana para ela e para os filhos: "Se o Lula soubesse o que é Estado nacional, teria dado uma bronca na mulher." Crítico ferrenho da política econômica – motivo, inclusive, da sua saída da presidência do BNDES em novembro de 2004 -, Lessa alerta que o governo não está dando a devida importância à crise internacional de petróleo. Ainda que o Brasil tenha reservas, a situação mundial pressionará os preços, especialmente das commodities, e o País não pode ter como única resposta o aumento das taxas de juros e a política cambial, determinados pelo Banco Central. "Querer controlar a inflação com câmbio é suicídio nacional", dispara. Lessa afirma que "é preciso acabar com a ‘paulistocentria’ na política brasileira". Sua chapa ideal seria formada pelo governador tucano Aécio Neves e o deputado Ciro Gomes, do PSB. Na segunda-feira 23, Lessa deu a seguinte entrevista à ISTOÉ:

ISTOÉ – A crise do petróleo que abala a economia mundial veio para ficar?
CARLOS LESSA

Veio para ficar, por uma razão muito simples: há 25 anos, as reservas conhecidas e estimadas de petróleo vêm crescendo menos do que o consumo. Grande parte do crescimento das reservas se dá por reavaliação dos campos já conhecidos. Não há descobertas relevantes de novos grandes campos.

ISTOÉ – A escassez tende a se agravar?
CARLOS LESSA

Sem dúvida. E a escassez empurraria inexoravelmente o preço do petróleo para cima. Eu não entendo por que o governo brasileiro não assume isso como um dado estratégico. Isso modifica todo o futuro. Talvez seja o dado mais importante à meditação do planejamento do País.

ISTOÉ – O governo alega que, graças às reservas de pré-sal, o Brasil está em situação mais confortável.
CARLOS LESSA

Não é esse o problema. Em primeiro lugar, é inexorável uma inflação mundial. E o Brasil não vai escapar a ela. Por quê? O petróleo é o formador de custos de todos os alimentos e de todas as commodities no mundo. Tudo que é produzido tem um componente pesado de transportes, principalmente as commodities e as matérias- primas. Então, todos os preços mundiais não vão parar de subir.

ISTOÉ – Nesse quadro, não importa se você é auto-suficiente ou não?
CARLOS LESSA

Só se você tiver uma política em relação ao seu próprio petróleo, diferenciando o preço para dentro do preço para fora. Aliás, é o que eu recomendaria ao Brasil. Não se trata de subsidiar. Deveria se vender pelo preço internacional para o mundo, mas, internamente, o combustível seria vendido com certa margem de ganho, porém pequena. Em vez de a crise inspirar uma política de petróleo para o País, ligada ao futuro, está inspirando outra coisa.

ISTOÉ – O que exatamente?
CARLOS LESSA

Está justificando o dr. Meirelles (Henrique Meirelles, presidente do Banco Central) a empurrar os juros para cima, para segurar a inflação pela taxa de câmbio. Ele só segura a inflação mundial empurrando para baixo a taxa de câmbio. Ao elevar os juros, ele consegue até segurar o câmbio, pois dá um prêmio colossal para os aplicadores estrangeiros em papéis brasileiros. Além disso, não aplica imposto sobre essas aplicações.

ISTOÉ – E assim atrai investimentos.
CARLOS LESSA

O dinheiro entra. E a taxa de câmbio vai para baixo. Meirelles segura a inflação com a taxa de câmbio. Mas a custa de quê? De pagar uma taxa de juros proibitiva, que impede o governo de fazer política de saúde, política de educação, política de transportes e tudo mais.

ISTOÉ – A inflação já ultrapassou o chamado centro da meta. A situação pode se agravar?
CARLOS LESSA

A inflação mundial já está produzindo intensos movimentos sociais de protesto na Europa. Eles estão importando petróleo a US$ 140 o barril e empurrando para cima os preços de tudo. Portanto, querer controlar a inflação por câmbio é suicídio nacional. Você premia a especulação de uma maneira desvairada. Quando empurra a taxa de câmbio para baixo, todos os indivíduos que trouxeram dólar antes e compraram títulos da dívida pública têm dois ganhos: um com a taxa real de juros louca que o Brasil paga e, outro, com a diferença entre o dólar que ele vendeu e o que ele compra, bem mais barato. O que o Meirelles faz é um suicídio nacional.

ISTOÉ – Há risco de desequilíbrio nas contas externas do País?
CARLOS LESSA

O problema é o seguinte: o especulador internacional adora receber os juros que o Meirelles paga. Aliás, isso também vale para o especulador brasileiro, que vai para o Caribe e volta como internacional. Agora, há um medo, que é o de o balanço de pagamentos do País começar a ratear. Se a conta comercial ficar fraca, o especulador internacional vai recuar.

ISTOÉ – A economia brasileira, a seu ver, está frágil?
CARLOS LESSA

Está estruturalmente muito frágil do ponto de vista macroeconômico de longo prazo. Acho também que está frágil do ponto de vista macropolítico de longo prazo. Pela seguinte razão: é caríssimo furar o pré-sal, exige desenvolvimento tecnológico e a manutenção de um patamar de preço internacional do petróleo altíssimo. Dominar os campos de présal pode se converter na melhor aplicação financeira possível para o Brasil. Mas, se extrair além de nossas necessidades, adoidado, o Brasil pode se tornar o Iraque do futuro. Por que os americanos estão no Oriente Médio? Por uma razão muito simples: os Estados Unidos não produzem nem 40% do petróleo que consomem. Imagine o Brasil dizer que tem um pré-sal colossal, que pode cobrir a brecha americana? Vamos virar de novo o quintal dos Estados Unidos. E não há pior coisa no mundo do que ser quintal deles.

ISTOÉ – Com relação à política de biocombustíveis, o Brasil está na posição certa?
CARLOS LESSA

Sou inteiramente favorável. Se o presidente Lula comete alguns erros estratégicos brutais, como a política em relação ao petróleo, em outras coisas ele acerta em cheio. Está certíssimo na questão do biodiesel e do combustível renovável. O Brasil tem tudo para ser uma grande potência. Nós temos muita energia hidrelétrica e podemos ampliar muito a oferta. E é a mais renovável de todas. Temos sol quase todo o ano, temos solo e temos água. Então, podemos produzir comida e energia renovável. Temos petróleo no pré-sal e temos urânio. Temos a sexta reserva de urânio do mundo e mais da metade do território nacional ainda não foi pesquisada. Mas não se discute energia neste País, discutem-se juros. O que se há de fazer?

ISTOÉ – Mas Lula já disse que é preciso aguardar o resultado da política monetária, antes de tomar novas medidas.
CARLOS LESSA

Não é verdade. Estão cortando despesas por todos os lados. As verbas prometidas não chegam. É uma quadratura do círculo. Como é possível compatibilizar o Meirelles empurrando os juros reais para cima e, ao mesmo tempo, expandir gastos? É impossível.

ISTOÉ – Não há uma política de investimentos, através do PAC?
CARLOS LESSA

É preciso tomar cuidado. O PAC é a lista de projetos de infra-estrutura que o País devia ter começado a fazer em 2003, quando Lula assumiu. Sei disso porque ele me pediu a relação de projetos. Quando eu era presidente do BNDES, trabalhei três meses com uma equipe de 50 pessoas e fiz uma relação dos projetos prioritários. É quase a totalidade dos projetos que estão no PAC. Mas faltam ao PAC os projetos de infra-estrutura urbana, como metrô e trem. Fazer a economia crescer com o automóvel vendido a 90 prestações mensais congestiona ainda mais as cidades. O PAC é modesto em relação ao que o Brasil precisa e chegou muito atrasado.

ISTOÉ – sr. ficou surpreso com as denúncias que envolveram recentemente financiamentos do BNDES?
CARLOS LESSA

Duvido que essas coisas tenham acontecido. A estrutura de decisão e de operações do banco tem uma quantidade muito grande de filtros. Para haver corrupção, tem de corromper de cima a baixo. Por exemplo, todo o pleito passa pela comissão de prioridades, que é formada por todos os superintendentes do banco. E a decisão final é da presidência do banco. Vai ver que tem firma de consultoria vendendo o que não tem para entregar.

ISTOÉ – Esse cenário de denúncias e de repique inflacionário vai ter reflexo nas eleições deste ano?
CARLOS LESSA

Eu acho que a despolitização avançou no Brasil numa extensão inacreditável. O povo não confia no Congresso e nos políticos. Curiosamente, isso aumenta o prestígio do Lula. Ele é o grande pai. Como acredita que os políticos são um poder inútil, quando não corrupto, o povo tende a buscar o pai universal.

ISTOÉ – O que poderá acontecer na eleição de 2010, que pela primeira vez não terá o presidente Lula como candidato?
CARLOS LESSA

Pode acontecer qualquer coisa. Acho que o PT vai apresentar a Dilma (Rousseff, da Casa Civil) como candidata à Presidência. E o Palocci (ex-ministro da Fazenda) vai tentar se mexer para ser candidato, se o Supremo Tribunal Federal absolvê-lo.

ISTOÉ – Mas a ministra Dilma Rousseff tem chances, apesar de todo o tiroteio contra ela, antes do início da campanha?
CARLOS LESSA

Qualquer um que não for o nome querido do mercado de capitais e do sistema de bancos vai tomar pancada de todos os lados. A Dilma está apanhando de maneira injusta. Acho que o Palocci é a figura de eleição do mercado. Se não podem fazer o Meirelles candidato a presidente, então que seja o Palocci.

ISTOÉ – Como o sr. avalia as chances do deputado Ciro Gomes, que seria o candidato de seu partido, o PSB?
CARLOS LESSA

O Ciro seria um bom candidato. Gosto muito da idéia, do ponto de vista regional, de fazer uma aliança que não seja paulista. O Brasil precisa de um candidato que não seja paulista. A "paulistocentria" é excessiva. Gosto muito da idéia de que Minas esteja na composição presidencial. Gosto muito do Aécio, uma pessoa de muito potencial, e gosto muito do Ciro. Se eu fosse Deus e pudesse escolher, comporia uma chapa com os dois. A questão da cabeça de chapa ficaria para depois. Mas sou um ilustre marginal.

ISTOÉ – E o PMDB, ao qual o sr. foi filiado por tanto tempo, ficaria fora da corrida presidencial?
CARLOS LESSA

Pertenci ao PMDB no tempo do dr. Ulysses (Guimarães). Fiquei no partido por respeito a Ulysses. E havia figuras no PMDB que acho residuais, mas maravilhosas, como Roberto Requião, Pedro Simon, Luis Henrique. Mas o lado bom está completamente sufocado pelo PMDB das "capitanias hereditárias". O PMDB hoje é do Renan Calheiros e do Edison Lobão. Esse PMDB não quer a Presidência, quer lotear cargos.

ISTOÉ – Qual é a avaliação que o sr. faz do presidente Lula?
CARLOS LESSA

Acho que o Lula sabe o que é povo. Instintivamente, ele faz gestos e propostas que coincidem com o ânimo popular. Mas ele não sabe o que é nação. Não tem a menor idéia do que é nação e Estado nacional. Prova disso é a inércia do governo diante dos maustratos a cidadãos brasileiros, como se viu recentemente na Espanha. E a política econômica é uma catástrofe. Costumo dizer que o Brasil deixou de ser a República de Empreiteiras para ser o Império dos Banqueiros. E a empreiteira é mais conveniente, porque empurra o País para adiante. O presidente Lula fica deslumbrado pelo aplauso mundial. Ele é aplaudido por quem? Pelos parceiros dos banqueiros brasileiros.

ISTOÉ – E onde o governo acerta?
CARLOS LESSA

Em toda a política social. É correta a política de elevar o salário mínimo. É correta a política de bolsa família. É correto o Lula botar uma cortina protetora na Previdência Social. Acho que ele instintivamente sabe o que o povo quer. E, se ele estiver com o coração bom, volta em 2014. Mas espero que ele volte sabendo o que é nação. Que estude um pouco para saber o que é nação.