Em nome da exata informação, o jornalismo não pode fazer concessões àqueles de quem fala, seja na vida, seja na morte – e, por isso, desculpe, dona Ruth Cardoso, mas tem-se de dizer: a ex-primeira-dama do Brasil dona Ruth Cardoso, 77 anos, morreu de infarto na noite da terçafeira 24, em São Paulo. Por que o pedido de desculpas? Nada a ver com o fato de se falar de morte, até porque dona Ruth declarara publicamente, do alto de sua compreensão da condição humana como doutora em antropologia (doutorada pela Universidade de São Paulo com titulação superior nos EUA), que ela não carregava o medo de morrer. O pedido de desculpas tem relação, isso sim, com o título de primeiradama, era disso que ela não gostava, repudiava até – e, estivesse onde estivesse, bastava ser assim chamada para dizer franca e diretamente que tal reverência era coisa “muito antiquada”. Se ela não gostava do primeira, imagine então do ex-primeira. Ruth Corrêa Leite Cardoso, paulista de Araraquara, gostava mesmo era do dona. A araraquarense possuía o humor e a inteligência daqueles que produzem cultura com seriedade, mas não caem na armadilha de se levarem a sério: era avessa a títulos.

Pois bem, foi essa sinceridade que fez com que todos que a cercaram sempre a admirassem, até os adversários – declarou um dia que ACM era a “banda ruim” do PFL, não se ouviu resposta daquele lado da banda e ACM continuou respeitando-a. “Era uma mulher de inteligência superior e sinceridade ao extremo”, diz o governador de São Paulo, José Serra, que em muitas peripécias políticas se aconselhou com ela. Nos quesitos da independência intelectual e da sinceridade, aliás, ninguém foi impunemente amigo de dona Ruth – nem foi marido. Vale lembrar como ela definia o seu casamento de 55 anos com Fernando Henrique Cardoso: “Cumplicidade, não concordância. Se tiver idéia diferente, eu expresso. Não tenho de possuir a mesma posição política só por ser casada”. Dona Ruth concordando, dona Ruth discordando, o fato é que ela, como disse o senador Tasso Jereissati, “foi o único consenso dentro do PSDB”.

Desde que a República é República, o Brasil teve 31 primeirasdamas, 32 com a atual. Houve presidente como Hermes da Fonseca que nos deu duas: uma faleceu em meio à sua gestão (Orsina Fonseca) e ele se casou com Nair de Teffé. Houve presidente que enviuvou pouco antes da posse, caso do marechal Humberto de Alencar Castello Branco (sua mulher chamava-se Argentina Viana e ele não se casou mais). Teve presidente que se divorciou antes de assumir, a exemplo de Itamar Franco, que governou solteiro, apesar de namorador. Houve, também, grandes primeiras-damas como a jovem Maria Teresa Fontelle, 25 anos, segurando a barra do cinquentão presidente João Goulart no histórico comício da Central do Brasil em que ele transformou o País numa república sindicalista. Outro exemplo é Sarah Kubitschek, esposa do presidente Juscelino Kubitschek nos anos dourados de um Brasil ingênuo, porém mais delicado. Mas foi justamente dona Ruth, a mulher que encarrancava com o título de primeira-dama, a que melhor personificou essa função numa aliança que combinava discrição e eficiência. Dona Ruth admirava o filósofo Antonio Gramsci, mas pode-se dizer que, dele, ela subtraiu o ceticismo: ela era otimista da ação e otimista do pensamento. Sem alarde e sem o sorriso de palanque daquelas que parecem dizer: “Olha, gente, tô aqui.”

Foi com essa discrição de personalidade que dona Ruth criou e incrementou, nas duas gestões de seu marido (1995 a 2002), o Programa Comunidade Solidária e seus desdobramentos: o Alfabetização Solidária, que alfabetizou cerca de 2,5 milhões de jovens; o Universidade Solidária, que reuniu alunos e professores em ações sociais; e o Capacitação Solidária, que habilitou mais de 100 mil pessoas para o mercado de trabalho. Essa foi um pouco de sua práxis. A teoria que a embasava, essa vinha da vasta produção acadêmica: foi precursora no estudo da desigualdade, da imigração japonesa e da participação política da mulher, fundou o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, exerceu a docência na USP, na Maison des Sciences de L’Homme (Paris), na Universidade de Berkeley (Califórnia), na Universidade de Colúmbia (Nova York) e na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (no Chile, onde viveu com FHC, proibidos de continuarem na USP pelo obscurantismo da ditadura militar). A teoria e a prática construíram a primeira- dama e construíram, também, “uma das mais prestigiadas antropólogas do mundo”, conforme elogiaram-na os jornais chineses. Segundo o jornal londrino Herald Tribune, ela “reuniu governo e grupos privados no combate à pobreza num Brasil marcado por grandes desigualdades”. Dona Ruth sofreu morte súbita em seu apartamento na terça- feira 24 (a possibilidade de sobrevivência exige um desfibrilador). Dias antes submetera-se a um cateterismo e no passado sofrera de angina. Surgiu a discussão se deveria ou não ter sido desinternada, mas o fato é que anualmente cerca de 160 mil brasileiros têm morte súbita. Ela foi sepultada em São Paulo na quinta-feira 26 no cemitério da Consolação (no dia 26 de junho de 2007, portanto exatamente há um ano, FHC comprou esse túmulo) e lá viram-se admiradores anônimos, intelectuais e políticos de todos os matizes ideológicos. “Dona Ruth foi uma soberana. Soberana em seu jeito de encarar a vida”, assim despediu-se a amiga e atriz Consuelo de Castro.