i48653.jpgNa tentativa de explicar o surgimento da idéia nazista de supremacia racial já se recorreu às mais variadas fontes: mitologia grega, simbologia budista, darwinismo social e até mesmo ao conceito de vontade de potência cunhado no século XIX pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Agora recorre-se ao imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-1821), cujas táticas colonialistas teriam influenciado o ditador alemão Adolf Hitler na idealização da chamada solução final, ou seja, a dizimação total do povo judeu. Quem defende essa tese é o historiador francês Claude Ribbe em seu livro O crime de Napoleão (Record, 208 págs., R$ 35), que causou polêmica na França. Segundo Ribbe, 140 anos antes do holocausto, Napoleão teria colocado em prática uma máquina de extermínio equivalente aos campos de concentração. Mais: teria sido esse episódio-tabu da história francesa o grande modelo de Hitler à frente do genocídio nazista.

A carnificina promovida por Napoleão deu-se entre os anos de 1802 e 1803 e teve como palco as colônias francesas da América Central, especialmente Guadalupe e Haiti, na época conhecido como Saint-Domingue. Ribbe mostra que as expedições militares para reimplantar a escravidão nessas ilhas do Caribe provocaram a morte de mais de um milhão de pessoas, somados os próprios soldados franceses nascidos nas colônias. No auge da resistência nativa, Napoleão ordenara a matança programada da população negra desses países que se opunha à volta do trabalho forçado, abolido por lei em 1794, pela Revolução Francesa. O vasto leque de crueldades do exército napoleônico, comandado por Victor- Emmanuel Leclerc, cunhado do imperador, incluía fuzilar e queimar vivo, além da utilização de 1,5 mil cães buldogues vindos de Cuba e adestrados para comer carne humana. Some-se a isso a prática de extermínio em massa que mais tarde seria adotada pelos nazistas: a asfixia por gás.

No genocídio promovido nas Antilhas não existiram propriamente câmaras de gás. As vítimas foram os próprios marinheiros haitianos da guarda francesa, já que a ordem da coroa era matar todos os negros da colônia com idade superior a 12 anos – sentença que atingiu até os soldados nativos que serviam à França. Ribbe reconstitui a cena pavorosa: os soldados eram mandados para o porão dos navios e ficavam encerrados até a morte no ambiente tomado por dióxido de enxofre. Esse gás venenoso era produzido durante a desinfetação do local, principalmente para afugentar os ratos – a madeira exala a substância em contato com o fogo. Para desaparecer com os corpos, eles eram atirados ao mar com um saco de areia atado ao pescoço. O autor cita um trecho das Memórias, do marinheiro francês Christophe de Fréminville: “Às vezes, os sacos de areia cediam; outras vezes, a corda estava podre ou se rompia. Nesses casos, os corpos subiam à superfície. Era um espetáculo horrendo.”

OS MARINHEIROS ERAM LEVADOS PARA OS PORÕES DOS NAVIOS E OBRIGADOS A RESPIRAR DIÓXIDO DE ENXOFRE

Ribbe contabiliza 100 mil africanos mortos nas colônias francesas do Caribe. E isso sem contar aqueles que acabaram deportados para as prisões das ilhas de Elba e da Córsega, terra natal do imperador, antecipando a idéia dos campos de concentração. Considerado o artíficie da França moderna, o retrato de um Napoleão genocida não é bem recebido pelos franceses. Ainda hoje os livros escolares não falam abertamente das barbaridades cometidas a seu mando nas colônias. Em uma crítica do livro publicada no jornal Le Monde, Jerôme Gautheret argumenta que “as execuções foram de uma violência extrema, mas nada prova a existência de um plano de extermínio secreto”. Segundo o bonapartista Pierre Branda, Hitler dificilmente teria acesso a esse tipo de informação, já que dois livros de historiadores haitianos que serviram de referência para o autor, publicados no século XIX, nem sequer haviam sido lançados na Europa: “O ditador alemão não precisava ir tão longe, pois a Primeira Guerra Mundial não foi avara nesse tipo de extermínio.”

É conhecida a admiração que Napoleão sempre provocou nos ditadores, rol que inclui o italiano Benito Mussolini e o russo Josef Stalin. Hitler, por exemplo, fez questão de se vestir totalmente de branco quando foi visitar o túmulo de Napoleão durante a ocupação de Paris. A cerimônia deu-se no dia 28 de junho de 1940, rendendo uma foto que se tornou histórica. Tenha se inspirado ou não nas táticas de guerra do ídolo, uma coisa tinha em comum com ele: a mesma aversão pelo povo judeu. Em forma de panfleto raivoso, Ribbe desenterra uma frase do gênio militar corso que bem poderia estar em um discurso de Hitler: “Os males cometidos pelos judeus não vêm de indivíduos, e sim da própria constituição desse povo. São lagartas, gafanhotos que assolam a França.” Essas palavras foram ditas ao seu ministro da Justiça Mathieu-Louis Molé em 7 de maio de 1806.

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