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US$ 9,6 MIL
foi o valor obtido pela foto Omaha Beach, D-Day,
que mostra o desembarque das tropas aliadas

 

Todo repórter fotográfico passa por esse dilema ético: registrar uma situação trágica e levar consigo uma imagem histórica ou “perder a foto” e interferir diretamente na realidade. O fotógrafo húngaro naturalizado americano Robert Capa (1913-1954), que cobriu a Segunda Guerra Mundial e outros conflitos sangrentos, viveu esse impasse muitas vezes. Uma delas se deu ao desembarcar com as tropas aliadas na Normandia, costa norte da França, no dia 6 de junho de 1944, episódio conhecido como Dia D. Entre silvos de balas, fumaça preta de bombas e corpos que caíam destroçados – ou ­seja, imerso no horror de uma batalha em que poderia perder a própria vida –, ao ver terminados os filmes que tinha no bolso, ele, contudo, optou pela alternativa humanista. “Não fiz mais fotografias. Estava ocupado carregando macas”, escreveu. Esse depoimento está no livro “Ligeiramente Fora de Foco” (CosacNaify), com as memórias de seus anos no front, publicadas em 1947 e que permaneceram inéditas no Brasil por meio século. Recheada de imagens, a narrativa cobre apenas três anos da vida de Capa, de 1942 a 1945. A reunião de suas experiências, no entanto, faz calar os livros de história.

O relato que mais impressiona é justamente a descrição do Dia D, decisivo para a libertação da França do domínio nazista. Lembra Capa: “Os alemães estavam tocando todos os seus instrumentos e eu não conseguia achar espaço entre as bombas e balas que bloqueavam os últimos dez metros de praia. Fiquei atrás do tanque, repetindo uma pequena frase dos tempos da Guerra Civil Espanhola: Es una cosa muy seria.” Capa sobreviveu – acordou em um hospital com um pedaço de papel no pescoço onde se lia: “Caso de exaustão, sem plaqueta de identificação.” Outro momento de bravura se deu quando, acompanhando soldados americanos numa operação no rio Reno, foi obrigado a pular de paraquedas pela primeira vez: “Contei mil, dois mil, três mil e acima de mim estava a belíssima visão de meu paraquedas aberto. Os quarenta segundos até chegar à terra levaram horas contadas no relógio do meu avô, e tive muito tempo para desprender minha câmera, fazer algumas fotos e pensar em seis ou sete coisas antes de tocar o chão.”

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BEM EQUIPADO
Capa com sua Rolleiflex: cobertura de cinco conflitos,
iniciada com a Guerra Civil Espanhola

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Muito bem-humorado, Capa relata momentos de tensão com estilo (consta que o amigo Ernest Hemingway fazia correções no texto) e equilibra suas memórias com passagens impossíveis de se imaginar numa guerra. Na viagem que fez à Inglaterra em 1942 contratado pela revista “Collier’s”, ele trava amizade com o comodoro do navio que pensa ser ele o diretor Frank Capra – o fotógrafo passa o tempo contando casos de Hollywood que leu em revista baratas. Ao transferir-se para um navio de guerra, tem seu nome confundido com o de uma bebida. “Tragam os uísques e o capa”, teria dito o comandante. O máximo de espirituosidade se deu ao comprar um casaco de chuva Burberry e um cantil de uísque Dunhill para usar na operação na Normandia. Ao ser empurrado da embarcação pelo contramestre com um chute no traseiro, foi por água abaixo o sonho de ser o “invasor mais elegante de todos”. Assim ele se desfez da vestimenta caríssima: “Fiz um balanço da situação. Não haveria muito futuro para aquele casaco.”

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COMEMORAÇÃO
A alegria dos franceses na liberação de Paris,
foto de 26 de agosto de 1944

 

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Leia um trecho do livro:

1. verão de 1942

Não havia mais absolutamente nenhuma razão para levantar de manhã.Meu estúdio ficava no último andar de um prediozinho de três andares na Ninth Street, com uma claraboia no teto, uma cama grande no canto e um telefone no chão. Nenhum outro móvel – nem um relógio. A luz me acordava. Eu não sabia as horas e não estava especialmente interessado. Meu dinheiro se limitava a uma moeda de cinco centavos. Eu não ia me mexer enquanto o telefone não tocasse e alguém sugerisse algo como um almoço, um trabalho ou pelo menos um empréstimo.O telefone se recusava a tocar, mas minha barriga gritava.Entendi que qualquer tentativa de dormir seria inútil. Rolei na cama e vi que a senhoria tinha enfiado três cartas por baixo da porta.

Durante as últimas semanas, minha única correspondência era da companhia telefônica ou da companhia elétrica, então o mistério da terceira carta me tirou da cama.Claro, uma das cartas era da Consolidated Edison. A segunda era do Departamento de Justiça, informando que eu, Robert Capa, ex-húngaro, no momento sem nacionalidade definida, passava a ser classificado como estrangeiro potencialmente inimigo e como tal devia entregar minhas câmeras, binóculos e armas de fogo e teria de solicitar uma permissão especial para qualquer viagem que me levasse a mais de quinze quilômetros de Nova York.

A terceira carta era do editor da revista Collier’s. Ele dizia que, depois de analisar durante dois meses meu portfólio, a Collier’s chegara à súbita conclusão de que eu era um grande fotógrafo de guerra e que seria uma grande satisfação me contratar para um trabalho especial, que havia sido feita uma reserva para mim em um navio que partiria para a Inglaterra dentro de 48 horas e que anexo estava um cheque de 1 500 dólares de adiantamento. Ali estava um problema interessante. Se eu tivesse uma máquina de escrever e caráter suficiente, teria escrito uma resposta à Collier’s,contando que eu era um estrangeiro inimigo, que não podia ir nem a Nova Jersey, quanto mais à Inglaterra, e que o único lugar para onde podia levar minhas câmeras era o Departamento de Propriedade de Estrangeiros Inimigos, na Prefeitura.

Eu não tinha máquina de escrever. Tinha uma moeda no bolso.Resolvi jogar a moeda para o alto. Se desse cara, eu tentaria me safar
até com assassinato e iria para a Inglaterra; se saísse coroa, eu devolveria o cheque e explicaria a situação para a Collier’s.Joguei a moeda e deu. . . coroa! Entendi então que não havia futuro numa moeda, que eu ia aceitar e sacar o cheque e que daria algum jeito de ir para a Inglaterra.