Apesar disso, o secretário de Justiçade São Paulo diz que a sociedademudou muito nos últimos 25 anos eaté admite discutir o racismo

Até os 15 anos, o mineiro Hédio
Silva Júnior foi servente de pedreiro. Quando tinha 12 anos, sofreu uma
das piores discriminações de sua
vida, ao ser injustamente acusado por uma professora de português – disciplina que ele adorava – de, junto com outro amigo negro, ser o responsável por um furto na sala do diretor. Mas ele não abaixou a cabeça: militou no movimento negro, formou-se em advocacia pela Universidade São Judas, doutorou-se pela PUC-SP e tornou-se conhecido pela luta em defesa dos direitos humanos e da igualdade racial. Em 16 de maio, Hédio Silva tornou-se o primeiro negro a ocupar a Secretaria de Justiça e de Defesa da Cidadania, que, entre outras funções, cuida da espinhosa questão da Fundação do Bem-Estar do Menor (Febem), cujo modelo, o secretário admite, “é ultrapassado e tem que ser mudado”. Cheio de idéias para a nova função, como a criação de uma defensoria pública que ajude a população carente, Hédio disse em entrevista a ISTOÉ que sua ascensão revela uma nova percepção dos políticos para a questão racial, defende o sistema de cotas para negros nas universidades e diz que não tem outra aspiração política que a de “ser um bom secretário”.

ISTOÉ – O que motivou o governador Geraldo Alckmin a indicar uma pessoa que veio do movimento negro para o cargo de secretário da Justiça? E qual a sua expectativa em relação ao trabalho nessa pasta?
Hédio Silva Júnior

O governador quis ter na equipe uma figura que trouxesse o legado de interlocução com entidades da sociedade civil, que é a minha marca. Tenho uma trajetória de 25 anos nos movimentos sociais. Acredito que o governador estava mirando um fortalecimento no diálogo com essas entidades, notadamente aquelas que trabalham contra a discriminação e pela defesa da igualdade racial e de gênero. O que talvez facilite é que, pela primeira vez, um secretário de Justiça traz na bagagem esse trânsito com as organizações sociais.

ISTOÉ – Isso porque, historicamente, o governo tucano de São Paulo tinha dificuldades para dialogar com esses movimentos?
Hédio Silva Júnior

Durante muito tempo, essa idéia de movimento social no Brasil estava vinculada à esquerda. Hoje, esse quadro pode estar sofrendo alterações. A Associação da Parada Gay de São Paulo, por exemplo, não tem explicitamente uma inclinação para esse ou aquele lado do espectro político. É possível que a esquerda tenha perdido uma certa hegemonia que deteve durante muito tempo em algumas formas de organização social. O próprio movimento negro não traz mais o selo partidário de 20 anos atrás. Naquela época, seria uma heresia admitir um vínculo com um partido tido como liberal ou mesmo conservador. Hoje, é absolutamente normal que isso aconteça.

ISTOÉ – Quais os maiores desafios que o sr. terá à frente da secretaria?
Hédio Silva Júnior

São muitos. Mas estamos trabalhando. Recentemente, o governador enviou à Assembléia Legislativa o projeto que cria a defensoria pública de São Paulo. Nossa idéia é que o Estado tenha uma procuradoria de assistência judiciária para fazer a defesa da população carente. Desejamos também ampliar os canais de diálogo e participação com a sociedade civil. Os movimentos sociais cada vez mais têm ido à Justiça disputar a execução ou a concretização de certas políticas públicas previstas em lei, mas que não são cumpridas. A secretaria tem um trabalho de mediação e convênios com essas instituições, preparando seus advogados para lidar com esses temas. E temos o grande desafio de reverter uma imagem negativa que a Febem acabou adquirindo nesses anos.

ISTOÉ – É inquestionável que a Febem tornou-se um modelo esgotado. Quais as razões que a levaram a essa situação?
Hédio Silva Júnior

É um modelo montado há 20, 30 anos, que associava o tratamento do adolescente infrator a um sistema prisional convencional. É o discurso de uma parcela minoritária, mas ainda barulhenta, de funcionários que pleiteiam a manutenção de um modelo antigo e ultrapassado de prisão. É, sobretudo, a cultura da internação. Em São Paulo há o entendimento, por parte do Judiciário e do Ministério Público, de que a única solução possível para delitos e infrações leves é a internação. Por isso, temos que romper com esse modelo, que se revelou absolutamente ultrapassado, e passar para um novo, que certamente irá enfrentar resistências e dificuldades.

ISTOÉ – E como será essa nova Febem?
Hédio Silva Júnior

Uma Febem descentralizada, para garantir que o adolescente fique o mais próximo possível de sua casa. Que ofereça a ele um bom programa de escolarização regular e de capacitação profissional. Que separe adolescentes por idade, compleição física e gravidade do delito cometido. A Febem deve também ser seletiva. Ela deve receber somente aqueles adolescentes que, no parecer do Judiciário, não apresentem um potencial de desenvolvimento da auto-estima e evolução caso sejam submetidos a outro tipo de tratamento que não a internação. Com isso, desejamos oferecer a esses jovens um horizonte real de mudança de perspectiva.

ISTOÉ – Quais seriam essas medidas socioeducativas? O sr. não teme que a sociedade as confunda com impunidade?
Hédio Silva Júnior

O adolescente poderia prestar uma série de serviços e teria sua
liberdade vigiada. O problema é que muitas vezes os juízes desconfiam que
a medida socioeducativa vá resultar em impunidade. Mas há um valor que é necessário desconstruir para que qualquer infração deixe de ser punida com a internação. E para isso é necessário o convencimento do Poder Judiciário. Não
se muda isso do dia para a noite. Mas é premente que haja consenso sobre
a necessidade desse debate.

ISTOÉ – Maioria nas instituições de correção como a Febem, os negros ainda são vítimas da discriminação. A lei que criminaliza o racismo não mudou a visão da sociedade sobre o tema?
Hédio Silva Júnior

O debate sobre ações afirmativas tem educado mais do que a criminalização do racismo pela Constituição de 1988. O que mudou é que a sociedade passou a reconhecer o problema. A opinião pública está muito mais treinada para identificar uma discriminação racial e se indignar diante dela. Há 25 anos, havia um consenso de que não havia problema racial no Brasil, e sim social. E hoje se debate se o sistema de cotas é mais apropriado do que a pontuação acrescida ou o investimento no ensino fundamental. O Brasil hoje, enfim, discute o problema racial.

ISTOÉ – Há uma discussão de que as cotas deveriam ser destinadas para pobres, e não especificamente para negros. Qual a sua análise sobre a questão?
Hédio Silva Júnior

Nunca indignou a consciência democrática brasileira o fato de você entrar numa sala de aula de uma universidade pública e só ver branco lá. E ao sair no corredor ver só negros na limpeza e na vigilância. Em São Paulo, até o início dos anos 50, havia normas que dificultavam o acesso de crianças negras à escola. Ao mesmo tempo, os fazendeiros ricos sempre mandavam seus filhos estudar na Europa. Por isso, estamos falando de uma corrida com uma brutal desigualdade em termos de ponto de partida. Além disso, há um outro dado significativo. Estatísticas do Enem revelam que nos últimos anos aumentou em quase 30% o ingresso de brancos pobres no ensino superior público no Brasil. E mantiveram-se os mesmos índices pífios de participação de alunos negros. Então, o negro pobre continua excluído do ensino público superior.

ISTOÉ – Além das cotas, que outras ações afirmativas têm sido tomadas para enfrentar a discriminação racial?
Hédio Silva Júnior

Estamos atendendo a uma antiga reivindicação do movimento negro. O governo paulista assinou um protocolo com a OAB pelo qual advogados e juristas indicados pela Ordem irão ministrar uma disciplina a respeito da discriminação racial nas escolas de Polícia Civil e Militar do Estado. É um avanço significativo que essas instituições adotem matérias específicas com o pressuposto de que na sua atuação os policiais não podem refletir o que de negativo foi aprendido. Combater estereótipos é sempre um desafio.

ISTOÉ – E como combatê-los?
Hédio Silva Júnior

Pela escola. Para mudar o valor etnocêntrico e eurocêntrico que as nossas instituições ainda refletem, você precisa ter negros nas universidades produzindo, propondo debates sobre o tema para que amanhã você possa ter uma alteração substantiva desse quadro. A pedagogia no Brasil sempre refletiu o negro como um objeto da história. Sempre retratou os brancos como os donos da vida e da morte. Da escravidão e da libertação. Sempre foi incapaz de reconhecer as lutas que marcaram a nossa trajetória. Alterar essa visão é fundamental. Além disso, tem que mudar a publicidade, projetar negros em outros lugares e mudar essa história de que só servem para entretenimento. É preciso tempo para mudar esses valores secularmente enraizados. Mas acho que quando a educação, a publicidade, a telenovela estão atentas a isso é aberto um canal fundamental de discussão.

ISTOÉ – Ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos e na África do Sul, o racismo no Brasil sempre foi um adversário invisível e dissimulado, o nosso conhecido ?racismo cordial?. Até que ponto a atuação do movimento negro mudou esse conceito?
Hédio Silva Júnior

Há 20 anos um grande amigo meu, o Hélio Santos, dizia que “era mais fácil ser militante do movimento negro em Nova York ou Cape Town do que em São Paulo”. O adversário era invisível. Nesse sentido, a experiência de organização e a afirmação da identidade política do movimento negro brasileiro foram uma conquista. Nós éramos isolados na sociedade brasileira. Não havia nenhum apoio, solidariedade e engajamento de qualquer segmento e, ao mesmo tempo, enfrentávamos um adversário que aos olhos das pessoas não existia. Conseguimos fazer emergir o problema na consciência das pessoas. Outro feito importante foi granjear um grande apoio na sociedade. Hoje você ainda tem um segmento que resiste em reconhecer a gravidade do problema. Mas a grande maioria dá razão ao movimento negro. Quando eu entrei na luta, em 1978, as pessoas diziam que a gente era um bando de pretos complexados. E, se houvesse um Spike Lee naquela época, diriam que era um bando de pretos complexados que ficava vendo muito filme do Spike Lee para inventar problemas que não existiam no Brasil.

ISTOÉ – O sr. tem aspirações políticas?
Hédio Silva Júnior

Tenho aspiração de ser um bom secretário (risos). Não. Quero fazer uma boa gestão. Há uma grande expectativa à minha volta. Existe a simbologia de o secretário ser negro e, ao mesmo tempo, uma alta expectativa das pessoas em relação ao nosso desempenho aqui. Não quero decepcioná-las. O fato de a ascensão de um negro a esse cargo ter tamanho impacto é revelador de quanto isso é importante para a sociedade brasileira. Até os 15 anos, eu era servente de pedreiro. Meu pai até hoje é operário e mora na periferia de São José dos Campos. Alguém me perguntou: “O que explica a sua chegada à secretaria? Seu currículo?” Não me parece ser. Poder-se-ia explicar o fato de um negro assumir um espaço como esse pela pressão social pelo aumento da representação do negro na sociedade. Mas isso já ocorria há 20 anos. O dado novo é que hoje há lideranças políticas mais atentas a isso. Eu disse ao governador Alckmin que eu me sentia honrado pelo convite, porque com certeza ele tinha inúmeras pessoas com um currículo melhor do que o meu. Essa percepção de que é preciso valorizar e dar visibilidade à comunidade responde pelo fato de eu estar aqui. Eu diria que no Brasil, lamentavelmente, isso ainda é um milagre.

ISTOÉ – Qual foi o pior tipo de discriminação que o sr. sofreu?
Hédio Silva Júnior

A mais pesada foi na escola. Sempre fui apaixonado pela língua portuguesa. Quando eu tinha 12 anos, houve um furto na sala do diretor da escola e a professora de português disse, na frente de todos os meus colegas: “Não quero acusar ninguém, mas acho que quem roubou esse negócio foram o Hédio e o Paulinho.” Conheço o Paulinho, que também é negro, desde os sete anos. É o meu amigo mais antigo. Foi muito duro. Por muito pouco, não abandonei a escola por conta disso.

ISTOÉ – E hoje, o sr. sente menos discriminação?
Hédio Silva Júnior

Quando viajo de avião, geralmente as comissárias de bordo me oferecem
o jantar em inglês. Isso acontece em vôos domésticos. Demorei um pouco para entender esse negócio. Mas depois percebi que, no Brasil, um negro viajando de avião não pode ser brasileiro. Eles devem pensar: “Esse negão só pode ser americano” (risos).