Por obra e graça da prefeitura, sai neste mês no Rio de Janeiro um documento indispensável ao estudo dos costumes cariocas. É o Manual de Ordem Pública. Ele exorta a população a fazer sua parte, como voluntária, na campanha do governo Eduardo Paes para popularizar o pacote de banalidades administrativas que a marquetagem política põe diariamente nos jornais como Choque de Ordem.

O panfleto chega com uma tiragem de 400 mil exemplares. Trata de coisas triviais, dessas que qualquer pessoa deveria aprender em casa, na escola ou, em última instância, na hora de tirar a carteira de habilitação. Recomenda não jogar lixo no chão. Ou não fechar cruzamentos com o carro, como exercício de mau humor nos engarrafamentos.

Não seria novidade, se não fosse um sinal de que a civilização urbana, mesmo em suas acepções mais simples, virou novidade oficial no Rio de Janeiro. No mais, o manual é uma cartilha do senso comum, em tradução das mais modestas. Tenta botar na cabeça dos agnósticos, que não creem nem no Código Nacional de Trânsito, o capacete exigido pela lei para quem anda por aí de motocicleta. Sugere deixar as vagas de deficientes físicos para deficientes físicos. No parágrafo mais retórico, esforça-se para convencer cada cidadão a "ajudar um pouquinho os outros", porque isso "não custa nada e melhora a vida de todo mundo".

Em outras palavras, menos afáveis, o folheto está aí para dizer que a anarquia da vida cotidiana não passa de um regime de opressão popular e espontâneo, em que todos podem fazer quase tudo, mas ninguém consegue fazer quase nada, porque a paralisia geral trava e consome os melhores esforços minoritários. É o caso, por exemplo, da avenida Rio Branco, inaugurada há pouco mais de um século pelo prefeito Pereira Passos para ser o caminho mais curto entre o Brasil e a Europa. Ela tem menos de dois quilômetros. É varrida de ponta a ponta por garis seis vezes por dia. E vive imunda.

O Manual da Ordem Pública, pela obviedade, tem tudo para virar um marco da história do Rio de Janeiro, quando a posteridade se debruçar sobre seus mandamentos sem notícias do presente e sem a nostalgia que transforma qualquer passado numa etapa dos bons tempos. É o flagrante de uma cidade em processo de favelização, numa hora em que a favelização não se mede mais exclusivamente pelo crescimento físico das favelas, mas pela informalidade instituída.

Sim, elas continuam subindo os morros. Tomaram mais 250 mil metros quadrados da cidade só nesta década. Mas os dados oficiais apontam que, contrariando a impressão coletiva de sua predominância arquitetônica no cenário carioca, elas perderam o fôlego ultimamente para desmatar encostas verdes na parte mais vistosa do centro e dos bairros residenciais mais consolidados. Como a própria cidade, estão de mudança para os confins de Jacarepaguá e da zona oeste.

Se ainda são vistas como fábricas de construções irregulares, ocupando cada vez mais espaço no Rio de Janeiro, é porque os favelados deixaram de se comportar como se morassem em guetos. São eles, e não as favelas, que agora se encontram em toda parte. Nas praias, e não apenas para vender refrigerante ou sanduíche. Nas ruas, com suas vans. Nas calçadas, com suas barracas. Eles nunca estiveram tão perto de desfavelizar-se. Mas, para isso, a cidade precisa dar o bom exemplo.