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TEMPOS DO PDT
O ex-governador Collares cumprimenta Dilma
em encontro de mulheres do partido

 

"Aquela é a Dilma.” Essa era a frase que ecoava pelos corredores da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul à passagem da nova estudante. Hoje professor universitário, Victor Hugo Santana ainda se lembra da noite de 1974 em que foi alertado sobre a identidade da colega. Mineira de Belo Horizonte, Dilma passara quase três anos presa em São Paulo e escolhera Porto Alegre para reconstruir a vida. O general Ernesto Geisel tinha assumido a Presidência da República, mas ainda não se falava em distensão do regime. “Eu nunca me meti com política, mas o clima era terrível”, recorda outro contemporâneo da presidente eleita, o consultor Nelson Correia Karan. Na praça Argentina, ao lado da faculdade, os confrontos entre estudantes e militares eram constantes. Dilma passava ao largo dos embates. Começara em outro patamar a fase gaúcha de sua trajetória. E foram 29 anos intensos.

Na faculdade, com os cabelos crespos sempre presos, calça jeans e vez por outra uma bata indiana, Dilma se preocupava em estudar e cumprir os créditos do curso. Não conseguiu aproveitar nenhuma matéria feita na Federal de Minas Gerais, de onde fora jubilada por participar de movimento de esquerda. Em Porto Alegre, a situação mudou. “Ela era uma referência para nós”, recorda Pedro Cezar Fonseca, que chegou a vice-reitor da universidade gaúcha. Em julho de 1977, um ano e quatro meses após o nascimento da filha, Paula, Dilma concluiu o curso. Como paraninfa, os formandos escolheram a atual governadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius (PSDB), professora de moedas e bancos. Dilma não participou da missa nem da cerimônia de formatura. Como outros três colegas, colou grau no gabinete da direção da faculdade.

Fora do mundo acadêmico, Dilma desenvolvia múltiplas atividades desde que desembarcara em Porto Alegre, em meados de 1973, para morar com os sogros, Marieta e Afrânio Araújo. Da casa à beira do rio Guaíba avistava a ilha cujo presídio abrigava presos políticos, entre eles seu namorado, o advogado Carlos Franklin Paixão Araújo, que havia sido transferido de São Paulo. Cumprindo pena na ilha também estava o hoje deputado estadual gaúcho Raul Pont (PT): “Dilma nos abastecia com os jornais diários, enviados pela barca da polícia, cujo ancoradouro fica próximo à casa do Afrânio.” Advogado trabalhista e comunista respeitado, o sogro de Dilma estava sempre ao seu lado nos dias de visita à ilha, aos domingos, assim como sua mulher.

Na casa da família, onde Araújo mora até hoje, Dilma se reunia por horas a fio com dois outros ex-presos políticos, Carlos Alberto De Re e Calino Pacheco Filho. Juntos, se prepararam para o vestibular. “A Dilma era disciplinadíssima, tinha base e método”, diz De Re, hoje diretor do teatro Dante Barrone, em Porto Alegre. “Se não fosse a política, ela seria uma grande teórica.” Quando Araújo foi transferido para o Presídio Central, também na capital gaúcha, Dilma deu aulas aos presos comuns, no curso supletivo da cadeia. Já estava na faculdade quando Afrânio morreu e a presença do filho algemado no velório indignou o meio jurídico gaúcho, que se mobilizou para agilizar o julgamento da liminar que garantiu a libertação de Araújo.

Ao mesmo tempo que fazia a faculdade, Dilma começou a trabalhar como estagiária na Fundação de Economia e Estatística (FEE), instituição vinculada ao governo estadual. De Re e Pacheco Filho também entraram para a FEE. Os três trabalhavam sem problemas até que, na campanha para o Senado de 1974, o oposicionista Paulo Brossard citou em debate dados sobre a mortalidade infantil no Estado. Questionado pelo adversário, aliado do regime militar, Brossard argumentou que os dados citados eram da instituição estatal. No dia seguinte, os órgãos de segurança passaram a vasculhar a ficha dos funcionários da FEE. “Como eu tinha participado de ação armada, fui logo demitido”, diz De Re. Dilma e Pacheco Filho permaneceram, mas a sobrevida foi curta. Perderam o emprego em 1977, quando o general Sylvio Frota, ministro do Exército, incluiu seus nomes numa lista de “subversivos infiltrados na administração pública” do País.

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ACADEMIA
O ex-preso político Carlos Alberto De Re:
“Se ela não fosse política, seria uma grande teórica”

 

Catorze anos depois, Dilma assumiu a presidência da FEE, nomeada pelo então governador Alceu Collares (PDT). Como diretor da Faculdade de Ciências Econômicas, Fonseca, um dos antigos contemporâneos da universidade, participava uma vez por mês da reunião do conselho da FEE. “ Fiquei impressionado com sua competência”, afirma Fonseca. Mais surpreso ele ficou quando Dilma, durante uma crise política do governo Collares, foi nomeada secretária de Minas e Energia. Isso porque, no dia seguinte, durante uma entrevista ao vivo, ela discorreu sobre redes de transmissão de energia como se estivesse há muito na área.

Antes de assumir o cargo mais alto da fundação da qual fora demitida por obra do general, ela atuou nos bastidores da política gaúcha. Em torno do Iepes, instituto vinculado ao antigo MDB, ajudou a promover debates que levaram a Porto Alegre intelectuais como Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni. Dilma também colaborava com o jornal alternativo “Em Tempo”, ao lado da jornalista Jandira Maria Cesar. “Ela chegou a escrever, mas se destacava pelo senso de organização”, diz Jandira. Na virada dos anos 1980, Dilma passou a dedicar-se à criação do PDT de Leonel Brizola, que voltara do exílio. Em seguida, começa um período de quase cinco anos como assessora da bancada do partido – ao qual se filiou – na Assembleia Legislativa. Atuava ainda na AMP, a associação das mulheres do PDT.

Donos de um escritório de arquitetura, Helena Meneghello e Alfeu Viçosa se aproximaram dela durante as campanhas do PDT, partido pelo qual o ex-marido de Dilma foi deputado estadual três vezes. “Brizola ligava para ela o tempo todo”, recorda Alfeu. Em 1985, o candidato do PDT, Alceu Collares, ganhou a eleição para a prefeitura da capital e convidou Dilma para seu primeiro cargo de destaque: a Secretaria da Fazenda. Mais tarde, no Palácio do Piratini, Collares a fez secretária de Minas e Energia, cargo que Dilma voltou a ocupar, na cota do PDT, no governo do petista Olívio Dutra (1999-2002). Dona de opiniões fortes, decidiu continuar no posto quando, por divergências internas, seu partido ordenara o contrário. Na ocasião, Collares ficou furioso. “Passou no dia seguinte”, garante hoje Collares. “O importante é a nossa identificação no campo das ideias.”

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VÍNCULO
Jandira e Dilma ficaram amigas na imprensa alternativa

 

Olívio, que conhecia Dilma de palestras no sindicato dos bancários, falava com frequência para Lula sobre a secretária eficiente. “Ela tinha tudo em seu laptop”, diz. Assim que Lula ganhou as eleições em 2002, Olívio avisou a Dilma: “Tu tens tarefas importantes pela frente.” Semanas depois, preparando a transição, em Brasília, Dilma recebeu um telefonema de Lula no celular. “Eu vou ser a ministra”, contou primeiro a Maria Regina Barnarques, que conhecera na Assembleia Legislativa gaúcha e levara de Porto Alegre. A assessora não conseguiu sequer abraçá-la, pois Dilma não poderia se antecipar ao anúncio oficial e a sala estava repleta de técnicos em infraestrutura. Parte deles participou mais tarde de um jantar, no qual Dilma, Maria Regina e um grupo reduzido de assessores brindavam o tempo todo: “Feliz Natal e feliz Ano-Novo.” Comemoravam, de fato, o fruto de quase de três décadas de trabalho da mineira em território gaúcho.